quarta-feira, 8 de julho de 2009

A morte de Jean Charles e a guerra contra o terrorismo

Theotonio dos Santos*

A morte do cidadão brasileiro Jean Charles pela polícia britânica, com sete tiros na cabeça, provocou uma onda de revolta no Brasil. De sua pequena cidade do interior até o presidente da República e os emigrantes no Reino Unido há um só sentimento de condenação pela violência injustificada da polícia. Entretanto, o governo britânico considera correta e até heróica a ação assassina que é aprovada pela imensa maioria da população do país. De onde surge esta profunda contradição?


É uma questão de critério. Mas quais são os fundamentos deste critério? Segundo os britânicos que apóiam seu governo, é necessário aceitar estes sacrifícios em nome de uma maior eficácia da luta contra o terrorismo. Mas o que ganha a luta contra o terrorismo matando inocentes com especial crueldade e sadismo?


Para qualquer pessoa que esteja em seu pleno juízo, uma ação policial tão equivocada e brutal só pode desmoralizar a polícia. Os verdadeiros terroristas devem estar felizes com este tipo de ineficácia e com os efeitos políticos que provocam na opinião pública internacional. Os ingleses, como os norte-americanos que realizam este tipo de ações com muita frequência, não têm nenhuma idéia do ódio que geram com as mesmas.


A verdade é que para a maioria das pessoas, mesmo num país que não conheceu a colonização britânica, como é o caso do Brasil, se trata de um caso de racismo. Nenhum cidadão anglo-saxônico seria assassinado pela polícia nestas circunstâncias. E não me digam que não há terroristas brancos na Grã-Bretanha onde o IRA operou por décadas. Pelo menos esta é a percepção dos muitos que têm sido humilhados pelos funcionários de emigração e por todos os símbolos de poder dos países dominantes em geral.


Porém, mais brutais ainda são as cenas das guerras que realizam periodicamente contra os mais diversos povos do mundo. Se eles crêem que isto não gera reações emocionais antiimperialistas no resto do mundo, se enganam profundamente. Mas estas ações são necessárias para manter a ordem e garantir a civilização, dizem os juristas, os cientistas sociais e os intelectuais que se encarregam de justificar o sistema. Mas quando o sistema não tem condições de economizar o uso da força e conseguir legitimidade, aumenta, ao mesmo tempo, o número de seus inimigos.


Daí a necessidade de recorrer ao terror de Estado. Seu objetivo é o de paralisar as forças em rebelião. Trata-se de produzir os exemplos capazes de gerar medo e terror nos possíveis rebeldes. Tudo depende da capacidade dos rebeldes de manter sua atitude desafiante. Eles necessitam dispor de uma base material que lhes permita sobreviver porque seus produtos são necessários ao sistema ou porque estão fora do mesmo e podem sobreviver independente dele.


Vemos, assim, que o ataque indiscriminado que não sabe reconhecer o adversário pode ser muito perigoso e gerar uma oposição superior às forças que pretende subjugar. Esse é o perigo que os movimentos racistas do chamado primeiro mundo tendem a representar: o de unir o mundo subdesenvolvido contra eles. O antiislamismo que comanda a ação repressiva atual contra o terror se estende a todos os povos morenos. Daí que um brasileiro do interior de Minas Gerais pode ser confundido com os "terríveis" e temidos "terroristas" muçulmanos.


A descrição oferecida pelos policiais da famosa Scotland Yard é uma confissão explícita de racismo. O suspeito, em primeiro lugar, usava uma jaqueta numa época de verão, tendo saído de um edifício suspeito. É claro que esses policiais não sabem que nos países tropicais ou semitropicais, certos níveis de calor são concebidos como frios para os padrões locais. Esta simples informação teria permitido Jean Charles sobreviver. Mas o jovem mineiro incorreu numa terceira conduta suspeita. Ele pulou a catraca do metrô como faz grande parte das populações pobres destes países.


Mas o mais definitivo ainda é o fato de não ter atendido às ordens dadas em inglês por policiais não uniformizados. Supõe-se que um jovem estrangeiro não saiba muito bem como comportar-se numa situação deste tipo, absolutamente incomum nas pequenas cidades de todo o mundo. E esta situação, que não ameaçava ninguém, foi resolvida com sete tiros na cabeça do rapaz.


Dois ou três dias depois, prenderam os verdadeiros culpados de terrorismo com a utilização de um aparelho paralisante. A advogada da família de Jean Charles acusou a polícia britânica de ter decidido matá-lo (aparentemente um emigrante qualquer) para obter um efeito exemplar. Eles não poderiam avaliar o quanto esta morte custaria à imagem da Inglaterra no Brasil e em outros países do chamado Terceiro Mundo.


Não há dúvida de que a repercussão desta morte no Brasil foi fora do comum. As razões são duas: primeiro, porque no Brasil aumentou a sensibilidade popular em relação ao fenômeno da emigração crescente de brasileiros, fenômeno que surgiu nos trinta anos de recessão ou baixo crescimento como consequência do domínio das políticas econômicas impostas pelo FMI.


Em segundo lugar, pela violência exagerada que caracterizou a ação da polícia inglesa, desorientada frente à ofensiva terrorista islâmica. Deve-se acrescentar ainda o crescimento do sentimento antiimperialista no Brasil como consequência da ação unilateral dos Estados Unidos no Iraque.


Jean Charles vivia em Gonzaga, uma cidade de 6 mil habitantes. Em seu enterro compareceram muito mais pessoas, que vieram das regiões vizinhas ou dos centros políticos e de informação do país. O governo inglês já apresentou desculpas, mas reafirmou a correção de sua política de segurança. A família deve processar o governo britânico e conta com a solidariedade de todo o povo brasileiro.


Estes fatos desmentem as tentativas de apresentar as relações internacionais como um fenômeno horizontal entre Estados independentes. A verdade é que a assimetria que caracteriza estas relações é parte de um sistema mundial desigual e combinado, hierárquico, explorador e espoliativo. Fatos aparentemente marginais conseguem, às vezes, pôr em evidência questões estruturais. É a gota que faz derramar a água do copo.

(*) www.monitormercantil.com.br - 05/08/2005 - 17:08

Um comentário:

Renata disse...

Em resposta e protesto o Brasil deveria tomar atitudes diplomaticas severas com relação ao cotidiano dos ingleses no Brasil, assim como nas suas entradas dentro do país, mesmo q fosse encarada como retaliação pelos de fora do Brasil,pois essa é uma das 1ªs atitudes tomadas por outros países em relação á estrangeiros residentes numa situação semelhante.

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