Caro
César: Há muito tempo não nos vemos mas acompanho seus artigos
quando posso.
Sempre
me lembro que você foi um bom aluno meu no Chile e vejo que você
busca sempre dar um fundamento analítico às suas posições
políticas. Isto faz parecer que você continua fiel à denúncia do
roubo de votos que caracterizou o crime eleitoral do Grupo Globo
contra Brizola que você alertou. Porém, não concordo com grande
parte dos seus exercícios teóricos.
Quero
contudo chamar a atenção para o seu último artigo no Globo
-
jornal que continua afeito ao golpismo que o caracterizou por décadas
- sobre as recentes eleições em Portugal, as quais você apresenta
como uma vitória da direita neoliberal.
Contudo,
trata-se exatamente do contrário: a direita no governo só alcançou
38,5% dos votos enquanto que a esquerda unida finalmente por um
programa comum anti-neoliberal obteve 50,7% dos votos e dispõe
claramente de uma maioria de deputados devendo portanto formar o
governo.
Na
verdade, mais uma vez, a direita busca apelar ao golpismo para
sustentar suas políticas contrárias às grandes maiorias sociais. O
presidente Cavaco Silva pretende impedir a posse de uma clara maioria
de esquerda anti-neoliberal.
Publico
abaixo um artigo que me enviou Sergio Caldieri para informar melhor a
você e aos leitores em geral do meu blog. O artigo de Jacques Sapir
é bastante claro e espero que você revise suas afirmações sobre a
vigência democrática do neoliberalismo.
Muito
cordialmente,
Theotonio
Silencioso golpe de estado em Lisboa
25/10/2015, Jacques Sapir, Russeurope, Hipothèses
25/10/2015, Jacques Sapir, Russeurope, Hipothèses
Portugal é vítima, nos últimos dias, de um silencioso golpe de estado organizado pelos dirigentes portugueses pró-Europa[1]. É evento especialmente grave. Acontece quando ainda está fresco na memória o golpe de força bem-sucedido contra o governo grego, pela combinação de pressões políticas vindas do Eurogrupo e pressões econômicas (e financeiras) vindas do Banco Central Europeu. E confirma a natureza profundamente antidemocrática, não só da zona-euro, mas também, e muito se deve lamentar, da União Europeia.
O
resultado das eleições portuguesas
Muito
se disse na França especialmente, na mídia, que a coalizão de
direita saíra vitoriosa nas últimas eleições legislativas em
Portugal. É mentira. Os partidos de direita, comandados pelo
primeiro-ministro Pedro Passos Coelho não tiveram mais de 38,5% dos
votos e perderam 28 assentos no Parlamento. A maioria dos eleitores
portugueses votou CONTRA as primeiras medidas de arrocho [orig.
"austérité"],
de fato, 50,7%. Eles eleitores votaram em candidatos da esquerda
moderada , mas também do Partido Comunista Português e de outras
formações da esquerda radical. De fato, o Partido Socialista
Português tem 85 cadeiras, o Bloco de Esquerda (esquerda radical)
19, e o Partido Comunista Português 17. De 230 cadeiras/votos do
Parlamento, as forças anti-arrocho têm 121; a maioria absoluta é
de 116[2].
Poder-se-ia
pensar num acordo entre os partidos da direita e o Partido
Socialista. Mas esse acordo nunca seria possível sem a rediscussão
de parte do programa de arrocho [orig. "austérité"]
que resultou do acordo entre o governo português e as instituições
europeias. E rediscussão que não deixaria de evocar a situação da
Grécia...
Os
socialistas e o "Bloco de Esquerda" disseram claramente que
aquele acorde teria de ser revisto. Foi o que motivou o presidente
Cavaco Silva a rejeitar o projeto de governo apresentado pela
Esquerda. Mas os considerandos da declaração de Cavaco Silva vão
ainda mais longe. Disse que"Considerados
todos os sacrifícios importantes feitos no quadro de um importante
acordo financeiro,é meu dever, e no exercício de minhas
prerrogativas constitucionais, fazer todo o meu possível para
impedir que se enviem falsos sinais para as instituições
financeiras e os investidores internacionais[3]."
Essa
declaração é, afinal, o verdadeiro problema. Que Cavaco Silva
pense que governo da esquerda unida possa levar a um enfrentamento
com o Eurogrupo e a União Europeia, é direito dele pensar o que bem
queira, e é até bastante provável que seja como ele diz. Mas numa
república parlamentarista como é Portugal hoje, o presidente não
tem absolutamente qualquer 'dever' ou poder de interpretar intenções
futuras, para opor-se à vontade dos eleitores.
Se
uma coalizão de esquerda e de extrema esquerda tem maioria no
Parlamento e se apresenta – como nesse caso – um programa de
governo, a lei manda que a maioria forme o novo governo. Qualquer
outra decisão aproxima-se de ato inconstitucional, e pode configurar
golpe de Estado.
Situação econômica de Portugal
O
golpe de Cavaco Silva surge quando a situação econômica de
Portugal, quase sempre apresentada pelos jornais e jornalistas e
'especialistas' de televisão como caso de "sucesso" das
políticas de arrocho [orig. "austérité"],
continua extremamente precária. O déficit no orçamento ultrapassou
7% em 2014 e teria de estar naquele ano bem abaixo de 3%. A dívida
pública já ultrapassa 127% do PIB. E se a economia conhece outra
vez algum crescimento, ela se mantém, em 2015, no nível de 2014. O
país foi empurrado dez anos para trás por conta das políticas de
arrocho, com golpe social (desemprego) extremamente forte.
De
fato, as "reformas" impostas como contrapartida do plano de
ajuda para financiar a dívida e os bancos não resolveram o problema
principal do país. Esse problema é a baixa produtividade do
trabalho. A produtividade do trabalho é muito baixa em Portugal, e
isso por várias razões, mão de obra pouco ou mal formada e
investimento produtivo muito insuficiente. Portugal pôde acomodar-se
a essa baixa produtividade nos anos 1980s e 1990s porque podia deixar
que a moeda se desvalorizasse. Depois de 1999 e da entrada no euro,
isso passou a ser impossível. Não surpreende, portanto, que a
produção esteja estagnada.
Os
sucessivos planos de arrocho [orig. "austérité"]
postos em ação têm o objetivo de achatar os salários (em valor),
sejam os salários diretos sejam os indiretos. Mas esse achatamento
só beneficia as exportações, porque ao mesmo tempo deprime o
consumo interno [4].
No caso em que uma depreciação da moeda deixaria inalterado o
consumo interno, é preciso que os ganhos na exportação realizados
graças aos planos de arrocho compensem as perdas no consumo interno.
Por isso os planos de arrocho SEMPRE serão menos eficazes que uma
desvalorização da moeda, e Patrick Artus pode acrescentar, em nota
datada de 2012:"O
ajuste pela taxa de câmbio dá resultados rápidos; vimos taxas mais
altas nos casos de Espanha e Itália em 1992-1993 com rápido
desaparecimento do déficit externo e aumento limitado no tempo de
desemprego. Vê-se também nos diferentes ajustes dos países
emergentes: Coreia e Tailândia em 1997, Brasil em 1998"[5].
A
responsabilidade do euro na situação econômica de Portugal é
inegável. Mas a responsabilidade das autoridades europeias no caos
econômico e político que pode estar a caminho é também
indiscutível.
Lições
a aprender
Fala-se
com frequência de um habituar-se ao desastre, de um cansaço de
sofrer que levaria os povos a abandonar-se ao pior. De fato, nada
disso se vê na atual situação. Os portugueses tentaram aplicar
métodos inspirados pelo Eurogrupo e Comissão Europeia, e hoje são
obrigados a constatar que esses métodos não dão os resultados
prometidos. O voto nas eleições legislativas é o resultado desse
processo. Mas dirigentes enfeudados no exterior, quer dizer, nas
instituições europeias, decidiram não levar em conta os votos.
O
que hoje se passa em Lisboa é tão grave, mesmo que pareça menos
espetacular, que o que se viu acontecer na Grécia.
A
natureza profundamente antidemocrática do Eurogrupo e da União
Europeia afirma-se ainda mais uma vez, e confirma-se. Só cego não
vê. E esse segundo evento poderia bem ser a gota d'água. Mas, para
que seja, é imperativo que todas as forças decididas a lutar contra
o euro encontrem formas de coordenarem suas ações. É preciso
também não esquecer o que La Boétie escreveu no Discours
de la servitude volontaire[1]
publicado em 1574[6]:
"os tiranos só nos parecem grandes porque estamos
ajoelhados"[7].
Poder-se-ia retomar essa fórmula, que nos parece tão contemporânea
e formulá-la assim:"as
instituições europeias só parecem grandes porque (os soberanistas)
estamos divididos".
Mais
que nunca, põe-se ante nós a questão da coordenação de
diferentes forças soberanistas. Essa coordenação não implica, de
modo algum, que seja pequena a força a que essas forças se opõem,
nem que poderia ser suspensa entre parênteses. É sempre a lógica
das "Frentes" como a "Frente Unida Anti-Japão"
feita na China pelo Partido Comunista Chinês e o Guomindang, que não
são alianças no senso estrito do termo, mas permitem marchar
separadamente e atacar juntos. Mas a realidade, por desagradável que
pareça a alguns, é que, se não formos capazes de nos coordenar, um
poder, na realidade minoritário, poderá continuar a exercer sua
tirania. E de golpe de estado em golpe de estado, instaurar um regime
permanente de golpe de estado.
[1]Evans-Pritchard A. "Eurozone crosses Rubicon as Portugal’s anti-euro Left banned from power", The Telegraph, 23/10/2015 [traduzido no Blog do Alok].
[3]Evans-Pritchard
A. "Eurozone crosses Rubicon as Portugal’s anti-euro Left
banned from power", op.cit..
[4]Blanchard
O. et D. Leigh, Growth Forecast Errors and Fiscal Multipliers,FMI
Working PaperWP/13/1,
Washington DC, janvier 2013.
[5]Artus
P., "Dévaluer en cas de besoin avait beaucoup d’avantages",
Flash-Economie,
Natixis, n°365, 29 mai 2012, p. 6.
[6]La
Boétie E., Discours
de la servitude volontaire,
Paris, Mille et une nuits, 1997.
[7]Essa
frase conheceu grande sucesso às vésperas de 1789, mas noutra
forma: "Os grandes só parecem grandes porque andam montados nas
nossas costas; sacudâmo-los de cima de nós, rastejarão pelo chão."
[1]Etienne
De La Boétie. [1574] Discurso da Servidão Voluntária.
Tradução: Laymert Garcia dos Santos. Comentários: Claude Lefort,
Pierre Clastres e Marilena Chauí. São Paulo: Editora Brasiliense,
1982 [NTs].
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