segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Resenha do "A América Latina e os Desafios da Globalização (Ensaios dedicados a Ruy Mauro Marini)", feita por Ricardo Antunes

Publicamos abaixo a resenha de Ricardo Antunes sobre o "A América Latina e os Desafios da Globalização (Ensaios dedicados a Ruy Mauro Marini)", que deve ser publicado na revista SEP.

Resenha de A América Latina e os Desafios da Globalização (Ensaios dedicados a Ruy Mauro Marini), Carlos E. Martins e Adrian Sotelo Valencia (org.), Boitempo/Ed. PUC Rio, 2009, SP, 389 pp.

RICARDO ANTUNES1


O livro A América Latina e os Desafios da Globalização (Ensaios dedicados a Ruy Mauro Marini) é parte de um esforço importante para recuperar um dos pensamentos marxistas mais originais que floresceram na América Latina, focados na análise crítica da economia política da dependência. Ruy Mauro Marini (junto com Theotonio dos Santos), saiu do Brasil depois do Golpe militar de 1064 e tornou-se responsável por uma reflexão que rapidamente se espalhou por toda a América hispânica.

Mas paralelamente a este movimento, sua produção, que se mostrava profícua no Brasil de meados dos anos 1960, foi perdendo presença em nosso país, a ponto de ser tão conhecida na América Latina quanto desconhecida em nosso território. Isso a torna, por si só, bastante emblemática. E é parte desta complexa problemática – a recuperação da obra de Marini – que nasceu este livro. Ele foi concebido em quatro partes: a primeira tem como traço marcante a forma do depoimento, com depoimentos de Theotonio dos Santos, Emir Sader e o comovente texto de Ana Esther Ceceña.

Ela toca no ponto central: “Paradoxalmente, com uma presença internacional indubitável, Marini retorna a um Brasil que não se lembra dele, que dificilmente o reconhece e onde as suas obras não eram quase conhecidas. Um Brasil que quer viver para frente para não carregar o peso de um passado que o compromete. Em pleno neoliberalismo, com a ilusão de um Brasil potência, apesar da penetração cada vez mais evidente de capitais norte-americanos, a so­ciedade brasileira aponta para o primeiro mundo. Ninguém se interessava pelos teóricos da dependência, que eram vistos como emissários de uma realidade que era preferível ignorar. Os anos 1980 foram os da atonia, mas também do reencontro. No entanto, os exilados não pareciam ser espera­dos por quase ninguém, e na volta não foi possível encontrar o que se tinha deixado ao partir”.(p. 46)

A segunda parte explora as conexões entre a dependência e o cenário atual da globalização, trazendo textos Immanuel Wallerstein, Andre Gunder Frank, Orlando Caputo Leiva e o de Adrian Sotelo Valencia, este último – só para destacar um deles - responsável por uma qualificada atualização das formulações de Marini para o mundo atual. Em suas palavras: “Nos últimos anos, as políticas do capital, a reestruturação produtiva e a força desagregadora do capitalismo financeiro de matiz especulativo, com sua onda de bolhas financeiras, provocaram o surgimento de um conjunto de fenômenos que podem ser resumidos em três vertentes: a desregulação do trabalho, a implementação da flexibilidade do trabalho e, finalmente, o fenômeno conhecido e detectado pelos trabalhadores e estudiosos de pers­pectiva crítica concernente à precarização do trabalho”.(p.119)

E acrescenta: do ponto de vista da economia política e da teoria da dependência, as novas periferias tendem a cumprir as algumas funções decorrentes da nova divisão internacional do trabalho e sua dinâmica regional, tais como: 1) servir como plataformas de recepção de grandes empresas que se deslocam para aproveitar vantagens geo­gráficas, salariais, trabalhos flexíveis, escassa legislação trabalhista, pouca resistência sindical e adesão de go­vernos neoliberais; 2) pressionar as empresas localizadas nos países desenvolvidos no sentido de baixar os salários, aumentar as taxas de exploração do trabalho e acirrar a concorrência entre os trabalhadores por postos de trabalho precários em seus próprios países centrais. (p.129)

Desse modo, a vigência da superexploração do trabalho no capitalismo avançado se mescla com a superexploração do trabalho nas periferias, que retroalimenta, duplamente, a valorização dos capitais.

A terceira parte explora as inter-relações entre trabalho e capital na era da mundialização, destacando aquela que é, provavelmente, a mais rica contribuição presente na obra de Ruy Mauro: a temática da qual foi um dos pioneiros no marxismo brasileiro, ao mostrar que, na particularidade do nosso capitalismo (e também no latinoamericano), vivenciamos algo mais intenso do que a exploração do trabalho, pois aqui floresceu a superexploração do trabalho, simbiose levada ao limite entre a extração da mais valia relativa articulada com a mais valia absoluta.

É dessa temática que versam os qualificados textos de Carlos Eduardo Martins, Pierre Salama, Marcelo Carcanholo e Jaime Osório. E este último faz uma recuperação central: Marini postula que o fundamento da dependência é a superexploração do trabalho, que compreende como sendo referente ao processo de vio­lação do valor da força de trabalho. Aqui reside o núcleo central de como se reproduz o capitalismo dependente. (p.174)

A diferença existente entre as economias centrais e dependentes é que a superexploração do trabalho é o fundamento da acumulação nos países subordinados. “Não é então nem conjuntural nem tangencial à lógica de como essas sociedades se or­ganizam. E ganha sentido quando se analisa o capitalismo como sistema mundial, que reclama transferências de valores das regiões periféricas para o centro, e quando as primeiras, como forma de compensar essas transfe­rências, acabam transformando parte do ‘fundo necessário de consumo do operário’ em um ‘fundo de acumulação de capital’ (Marx), dando origem a uma forma particular de reprodução capitalista e a uma forma particular de capitalismo: o dependente”. (p.174/5).

O texto de Carlos Eduardo Martins explora densamente essa tese central de Marini: a superexploração do trabalho ocorre pela confluência de três processos, simultâneos ou não, dados pelo aumento da jornada de trabalho, pela maior intensidade de trabalho e a redução do fundo de consumo do trabalhador. Essa argumentação foi, posteriormente, desenvolvida e ampliada no artigo “Mais-valia extraordinária e acumulação de capital”, datado de 1979, onde Marini recorre à noção de mais-valia extraordinária, a partir de uma sólida análise ancorada nos três volumes de O Capital. Martins percorre, então, os principais passos realizados pelo autor, numa rica exposição que apresenta tanto seus desenvolvimentos mais relevantes, quanto aqueles utilizados por seus principais críticos.

A quarta parte dialoga acerca da atualidade da teoria marxista da dependência, trazendo os textos de Marco A. Gandásegui Filho, Lucio Fernando Costilla, Francisco López Segrera, Cristóbal Kay e Oswaldo Munteal, sendo que o eixo trata das relações entre a teoria da dependência e a era da mundialização do capital. O espaço aqui não nos permite apresentar os principais elementos analíticos apresentados. Por isso terminamos com o artigo de Oswaldo Munteal, que retoma o nosso ponto de partida: Ruy Mauro Marini, escreve Munteal, sofreu dois exílios ao longo da vida. O primeiro, pelas ditaduras militares no Brasil e boa parte da América Latina. O segundo exílio, em função de um silêncio imposto pelos seus próprios colegas na universidade brasileira.

E acrescenta: “Um dos episódios marcantes desse ataque às idéias verificou-se no de­bate entre Marini e Fernando Henrique Cardoso em torno do neodesenvol­vimentismo reformista proposto pelo Cebrap. A discussão política na teoria da dependência refere-se ao caminho para a conquista da soberania nacio­nal: os dependentistas como Marini acreditavam na ruptura com a ordem econômica internacional capitalista, e na via revolucionária para a chegada ao socialismo. Enquanto isso, Cardoso e Faletto perguntavam se a alternativa era a revolução, ou a aliança com o capital estrangeiro a fim de possibilitar o desenvolvimento. Fernando Henrique, em nenhum momento, demonstra confiança na burguesia nacional como um instrumento capaz de tirar o país do subdesenvolvimento. Para agravar a situação, segundo Marini, a aposta de FHC e José Serra vai toda na direção de um modelo econômico que pudesse aliar dependência com desenvolvimento.” (p. 329)

Se o Cebrap pensava nos caminhos possíveis para chegar ao poder, acertou. Mas, se era para melhor compreender a realidade brasileira visando transforma-la, Ruy Mauro Marini deixa um legado que não poderemos encontrar nos dois escritores ordeiros da dependência, que se encontraram, coerentemente, no núcleo do poder, articulando o grande capital com o seu atrasado PSDB. Para continuar preservando e intensificando a subordinação estrutural do país.

1 Professor Titular de Sociologia no IFCH/UNICAMP. É autor, dentre outros livros, de Os Sentidos do Trabalho (Boitempo) e Adeus ao Trabalho? (Ed. Cortez).

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