Pablo Gentili - Secretário executivo do CLACSO e professor da UERJ
São
quatro e meia da madrugada. Acordo ansioso, angustiado e com uma
profunda sensação de impotência. Tenho vontade de sair correndo,
de gritar pela janela, de me encolher em um canto, de me tornar
invisível, de começar a chorar. Em casa, todos ainda dormem. Já
dei voltas e mais voltas. Nos últimos dias, minha cama parece uma
montanha-russa, na verdade, um abismo, como a borda fina de uma queda
infinita. E eu estou do lado do vazio, querendo chegar à terra
firme, que está logo ali, a poucos centímetros, inalcançável. Sei
que se olhar para baixo cairei. É melhor ignorar o fato de que meus
pés estão apoiados sobre um imenso precipício. Penso em você, meu
filho querido. Penso em tantos companheiros e companheiras, amigos
queridos desses vinte e cinco anos de Brasil. Penso que não posso,
que não podemos começar este dia de infâmia, de ignomínia e de
vergonha mostrando desesperança ou desequilíbrio. Penso que não
posso, sei que não quero, que este seja o primeiro dia da nossa
derrota, mas sim o primeiro da nossa próxima vitória.
Quero
e preciso escrever para você antes que chegue o fim um dia que será
lembrado como um dos mais nefastos e desonrosos da história
democrática da América Latina: o dia em que derrubaram Dilma
Rousseff sem outro argumento que o da prepotência da mentira, sem
outro mecanismo que a infâmia, sem outro objetivo que continuar
fazendo do Brasil uma terra de privilégios, de abusos e de
impunidade. Sei que não preciso lhe explicar nada, que com seus
dezoito anos você já sabe muito bem o que está acontecendo neste
país que, por ser seu, tornou-se meu, embora por vezes você não
entenda como, depois de tantos anos, eu ainda não aprendi a
pronunciar certas palavras em português.
Quando você
nasceu, eu já estava no Brasil há sete anos. Contudo, enquanto você
crescia, comecei a compreender que nós nascemos em um país, mas às
vezes renascemos em outro. E que ver você crescer, ter a alegria
infinita de ter compartilhado com vocês esses anos, fez com que,
entre outras coisas, o Brasil ficasse tatuado na minha pele,
marcando-a indelevelmente com uma de suas tantas identidades, a
dignidade, essa que não dá chance à adversidade porque sabe que o
pessimismo foi inventado pelos poderosos para continuar no poder.
Você fez o Brasil ficar marcado no meu coração, oferecendo-me essa
generosidade cosmopolita própria das ilhas e não dos continentes,
essa solidariedade que hoje parece tão distante, tão alheia. Hoje,
sinto-me um brasileiro morando em um país estranho, irreconhecível,
indescritível.
Todos
(ou quase todos) têm uma pátria. Eu tenho a sorte de ter duas. Com
você, tornei meu o Brasil da solidariedade, o Brasil da luta pela
justiça, pela liberdade e pelos direitos negados historicamente às
grandes maiorias. O Brasil dos que não se resignam a aceitar a
derrota do bem comum, o Brasil dos da Silva, o Brasil dos que
nasceram sem nada além de suas mãos e da posse de seus princípios,
sem nada além de seu trabalho e da valentia necessária para
reconstruir uma nação que quase sempre os tratou com desdém, um
país no qual quase sempre triunfou a infâmia, que os estigmatizou e
humilhou, que os desprezou e ignorou. O Brasil dos Joãos e das
Marias, o Brasil desses a quem nunca foi permitido falar, porque se
supõe que não têm voz, que não sabem o que dizer ou que
simplesmente não existem porque ninguém os ouve gritar. O Brasil
daqueles que, neste momento, quando ainda não amanheceu, não
escrevem como eu suas impotências, mas estão indo trabalhar, como
fazem todos os dias, há tantos anos e desde estão cedo na vida,
sabendo que poderá faltar até mesmo a comida para alimentar seus
filhos, mas nunca aquilo que sempre faltará aos donos do poder e da
palavra: a dignidade necessária para olhar o futuro sem sentir
vergonha.
Quero escrever a você porque
acredito que é necessário compartilharmos um esforço comum para
entender o que aconteceu. O que aconteceu com o país e o que
aconteceu conosco. Certamente será necessário registrar os fatos, a
sequência de eventos que se seguiram nos últimos meses, muitos
deles surpreendentes e outros morosos, soporíferos, de tão
repetitivos e monótonos. Fazer isso será algo necessário e
essencial, é verdade. No entanto, creio que nós também precisamos
fazer um grande esforço e, certamente, muito doloroso, para entender
quais foram as causas que nos trouxeram até aqui. A reflexão e o
conhecimento são fundamentais para a luta política. E a análise de
nossas ações, a reflexão sem desculpas do que nós mesmos fomos
capazes ou incapazes de fazer para evitar determinadas derrotas é
absolutamente essencial para iniciar as lutas que virão, sem repetir
as tragédias e farsas da história que teremos de viver.
O
conhecimento e a crítica são ferramentas políticas. Se não as
aplicarmos a nós mesmos, correremos o risco de viver momentos ainda
mais sombrios. Hoje, após o que será um dia de hipocrisia e de
infâmia, depois que o senado brasileiro tiver dado início à
destituição de Dilma Rousseff, será necessário pensar
coletivamente, de forma urgente, aberta e sem concessões, procurando
compreender por que tudo isso aconteceu.
Os
últimos trinta e cinco anos da história do Brasil foram marcados
pelo protagonismo e pela liderança do Partido dos Trabalhadores (PT)
nas grandes conquistas democráticas de um país que saía de uma das
ditaduras mais longas da América Latina. O PT não foi o único
responsável por essas grandes realizações, é verdade. Sem ele,
entretanto, sem suas lutas, seus líderes, seus membros e, em
particular, duas grandes organizações como a Central Única dos
Trabalhadores (CUT) e o Movimento dos Sem Terra (MST), não é
possível compreender e interpretar os avanços e retrocessos da
democracia brasileira nas últimas décadas.
A
chegada de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência da república,
em janeiro de 2003, foi o resultado e a cristalização de avanços
significativos no processo de democratização vivido pelo Brasil
desde o fim da ditadura militar, em meados da década de 80.
Contrariando as previsões preconceituosas e desqualificadoras
daqueles que pensavam que o destino da maior nação da América
Latina não podia estar nas mãos de um torneiro mecânico de origem
rural e sem estudos universitários, Lula transformou o Brasil em uma
nação com um enorme reconhecimento internacional, com um potencial
econômico e de desenvolvimento social nunca antes visto na história
do país. A sociedade brasileira veria pela primeira vez sua pátria
se tornar uma potência mundial com espaço, prestígio e não pouca
admiração no cenário global, graças à combinação de políticas
de inclusão social que tirariam milhões de pessoas da pobreza
extrema, poria fim ao flagelo da fome, multiplicariam o acesso a
direitos fundamentais historicamente negados e promoveriam uma
distribuição de riqueza sem precedentes no continente. Uma nação
que faria valer sua posição estratégica em um novo cenário
mundial, sem repetir a histórica subordinação aos interesses
intervencionistas norte-americanos, e expandiria o horizonte do
multilateralismo, apoiando um forte processo de integração
latino-americana. Uma nação que, pela primeira vez, estabeleceria
uma forte e ativa relação econômica, política e científica com
os países africanos, eternamente desprezados pela diplomacia
dominante brasileira.
É
um fato curioso que esse progresso impressionante do Brasil durante a
última década seja desconsiderado em nosso próprio país, ou
quando reconhecido seja atribuído à sorte de se ter vivido uma
conjuntura econômica excepcionalmente favorável, com a alta dos
preços das commodities, particularmente do petróleo, do minério de
ferro, da soja e de outros insumos primários, base das exportações
brasileiras. O Brasil não mudou sua matriz produtiva nem sua
estrutura tributária, um problema grave para o presente e para o
futuro do país, mas de fato transformou radicalmente as prioridades
de investimento do fundo público e de estabelecer sem concessões
quem deveria estar no centro das prioridades do orçamento
nacional: os pobres e as necessidades acumuladas por uma dívida
social endêmica.
Sei
que você reclama e afirma, com razão, que nós não fizemos a
revolução que tantas vezes prometemos. Mas o nosso governo, o
governo daqueles que lutam por mais justiça social, por fazer
avançar os processos de construção da igualdade e da expansão da
cidadania, de maior liberdade, autonomia e participação
democrática, fez com que em menos de uma década o Brasil deixasse
de se comportar como uma nação indiferente às demandas,
necessidades e direitos fundamentais do povo; que o Brasil deixasse
de se mostrar como uma nação subalterna, colonial e dependente
diante dos Estados Unidos e das outras potências imperiais do
planeta; que se posicionasse diante do mundo como uma nação
responsável, soberana e fundamentalmente disposta a reverter o
legado de exclusão, miséria e abandono que carregavam sobre seus
ombros os setores populares urbanos, os trabalhadores e trabalhadoras
rurais, a população negra, as classes médias emergentes e as
comunidades indígena.
Não
foi uma revolução, ou talvez tenha sido, porém diferente daquela
que um dia imaginamos fazer. Quando Lula tomou posse da presidência,
em seu discurso histórico de 1 de janeiro de 2003, ele declarou que
seu sonho era viver em um país no qual as pessoas comessem pelo
menos três vezes por dia. Para aqueles que nunca sentiram a tirania
da fome e, ao contrário, exercitam descaradamente seu direito à
gula, talvez fosse considerada uma trivialidade populista lutar pelo
programa “Fome Zero”. Para aquela esquerda, convencida de que o
nirvana da revolução só pode ser alcançado após a aniquilação
da burguesia e a derrota definitiva do capitalismo, lutar contra a
fome talvez pareça muito pouco heroico. Mas garanto a você que,
para os mais de cinquenta milhões de brasileiros e brasileiras para
os quais ter um emprego passou a ser um direito, para quem ter acesso
a escola, habitação decente ou cuidados médicos básicos passou a
ser uma oportunidade real, para eles, filho querido, o que estava
acontecendo no Brasil foi algo absolutamente extraordinário e
inédito. Certamente não acho que só isso foi importante, mas
também o fato de que os mais pobres não tenham acreditado que tudo
isso aconteceu graças à generosidade de um Deus, de um líder
salvador ou de uma oligarquia paternalista, mas sim como fruto da
política e de um Estado que, pela primeira vez, reconhecia-os
em sua qualidade de cidadãos e cidadãs. Sei que essa não é a
revolução com a qual sempre sonhamos. E espero que não se
transforme na única revolução que você e sua geração pretendam
realizar em um país que, agora, parece teimar em voltar ao passado,
em repetir sua história de injustiça e desprezo pelos mais pobres.
O
Brasil se transformou e deu início a um processo de modernização
social. O mundo reconheceu e compreendeu que, sem nenhuma sombra de
dúvida, os grandes arquitetos dessa mudança foram Lula e o Partido
dos Trabalhadores.
Mas
ninguém é profeta em sua própria terra, nós já sabemos disso. A
direita brasileira odeia Lula. Ela o odiava antes que ele vencesse as
eleições em 2002; ela o odiou durante e após seus dois mandatos
presidenciais. Lula sabe que a direita o odeia e que manifesta seu
desprezo para com ele e as realizações de seus governos por meio
das organizações em que atua: obviamente, os partidos
conservadores, as corporações empresariais, algumas das igrejas
evangélicas inquisidoras e corruptas, bem como setores dos meios de
comunicação, da justiça e das forças de segurança. A direita não
o odeia apenas por ser de esquerda ou porque ele pertence a um
partido socialista que transformou a esquerda latino-americana. Não.
Eles o odeiam porque Lula ampliou direitos e multiplicou
oportunidades de desenvolvimento, bem-estar e progresso social para
milhões de brasileiros e brasileiras que haviam nascido em um país
que os queria calados, silenciados, submissos, invisíveis. Eles o
odeiam por ter chegado ao poder e não ter se transformado em mais um
na lista de ditadores, medíocres, covardes, incompetentes,
mentirosos, medrosos e traidores que compõem grande parte da galeria
dos presidentes do Brasil desde a proclamação da república.
O
que certos setores mais dogmáticos da esquerda não entendem é como
a direita o os grandes grupos econômicos odeiam tanto Lula se seu
programa de reformas sociais não interferiu nas estratégias
dominantes de acumulação e reprodução do capital durante a última
década. Os mais ricos não deixaram de ganhar nos últimos anos; ao
contrário, alguns aumentaram suas fortunas. Os níveis de
desigualdade, embora tenham diminuído, não alteraram a estrutura
profundamente injusta de distribuição da riqueza, do poder e dos
benefícios. O que essa esquerda supõe é que, pelo fato de Lula não
ter desestabilizado as bases de sustentação do capitalismo
vernáculo, o poder econômico, os grandes monopólios de imprensa ou
a própria política conservadora deveriam venerá-lo. Não vou pedir
que você faça o que eu, quando tinha sua idade, fui incapaz de
fazer. Mas quero advertir-lhe a sempre desconfiar das explicações
políticas ou sociológicas que parecem simples demais, das análises
nas quais não se identifica nenhuma curva, nenhuma margem para
dúvidas. A esquerda dogmática está enganada a esse respeito, como
quase sempre está enganada, no Brasil e em todos os lugares.
A
direita não luta apenas para que seus interesses não sejam
questionados; não luta somente para não parar de ganhar nem para
continuar a acumular mais riqueza, ou para manter seus interesses
inalterados. Ela luta por algo mais: impedir que uma política
qualquer acabe desestabilizando ou ameaçando, por meio da ampliação
das oportunidades e dos direitos dos mais pobres e excluídos, as
estruturas de poder sobre as quais se sustenta um sistema injusto e
desigual que pertence a eles e o qual não querem mudar. Não se
trata só do capitalismo, mas do capitalismo praticado nos trópicos,
o capitalismo selvagem, incapaz inclusive de conviver com uma
democracia que seja algo mais do que o comércio de votos entre
candidatos insípidos e obedientes. Quando, na América Latina, a
democracia produz resultados democráticos, quando serve para afirmar
os direitos dos cidadãos, essa democracia é anulada e surgem os
golpes de Estado. Desta vez, sem a presença dos militares. Assim
como acontece em uma caçada, é uma questão apenas de esperar o
momento certo. A democracia está cercada pelos poderes que pretendem
transformá-la em uma sombra do que deveria ser, em uma caricatura
grotesca, sem conteúdo ou adjetivos que lhe deem alvo e sentido. A
classe dominante se convenceu de que se não é possível vencer a
democracia, é preciso esvaziá-la. Transformá-la em algo que seja
desprezível, desnecessário, em uma sinfonia de procedimentos
distanciados da realidade das pessoas. Inútil como uma plataforma
mínima a partir da qual sonhar e imaginar um mundo mais justo, mais
livre e igualitário. Uma democracia que, afinal de contas, não
interesse a ninguém. Uma democracia anoréxica, sem graça, fútil,
frívola, insignificante.
Se
você se opuser a isso, terá de enfrentar o poder. E esse campo
político que chamamos esquerda nasceu para fazer isso: enfrentá-lo.
É
por isso que odeiam Lula e farão tudo que estiver ao seu alcance
para destruí-lo. Não tem a ver com uma pessoa. Trata-se de um
projeto, de uma utopia, de uma esperança que está em jogo. Não é
um homem, é um horizonte. Não é Luiz Inácio que os aterroriza,
são os Lulas que estão por vir.
E
caberá a você e a sua geração inventá-los.
Sim,
eu já sei. Imagino sua expressão de tédio ao ler isto. Você me
dirá que só sei falar de Lula, contar suas histórias e relatar os
feitos de seu governo. Mas que a presidenta é Dilma, e que o “nosso”
governo não ia nada bem.
É
verdade. O segundo mandato de Dilma começou com um grande erro
estratégico, em um momento no qual as condições políticas e
econômicas haviam mudado significativamente. Após o apertado
resultado das eleições que lhe garantiram a vitória em outubro de
2014, o governo se transformou no defensor de uma maior disciplina
fiscal, abandonou os mecanismos participativos e consultivos da
política pública, que haviam sido criados durante a gestão de
Lula, além de se aproximar estreitamente das perspectivas e enfoques
daqueles que assessoram, interpretam e determinam os humores do
mercado. Para isso, colocou à frente do Ministério da Economia um
exímio neoliberal e lhe deu carta branca para avançar em uma severa
política de ajuste fiscal. Se a estratégia era ganhar amigos, o que
se conseguiu foi perdê-los por todos os lados. A direita correu pela
esquerda, a esquerda não soube para onde correr, e quase ninguém
acreditou na promessa de que era possível reduzir drasticamente os
gastos públicos sem mexer nos programas sociais.
Dilma
Rousseff sempre foi uma excelente administradora, uma militante
inabalável e uma lutadora corajosa. Ela é, também, uma pessoa
extraordinária, dura e exigente, mas generosa, comprometida e
dedicada de corpo e alma à construção de um Brasil mais justo,
mais democrático e igualitário. O desprezo com o qual a trataram
nos últimos meses é muito mais do que uma rejeição aos caminhos
assumidos por seu novo mandato. É uma reação que pode ser
explicada no contexto de um fascismo social emergente e a partir de
um exercício ensurdecedor de misoginia, de um machismo
descontrolado, de pura humilhação pelo simples fato de Dilma ser
mulher. Sim, é fato que se ela fosse homem provavelmente também
buscariam meios de destituí-la. Mas não creio que se assim fosse
teríamos visto se multiplicarem as mais diversas formas de desprezo
que foram manifestas nestes dias no parlamento, por alguns meios de
comunicação e certos inquisidores evangélicos, com a mais absoluta
impunidade.
Não
é por acaso que a representação de mulheres no Congresso
brasileiro tenha diminuído, e que algumas das poucas que nele têm
seus cargos o façam como representantes de seus maridos, também
políticos profissionais. Não é por acaso que quase não se tenha
negros, e menos ainda mulheres negras, ou indígenas, e menos ainda
mulheres indígenas, ou jovens, e menos ainda mulheres jovens. É um
fato escandaloso que esse parlamento misógino, machista e recheado
de preconceitos, onde a Bíblia é mais citada do que a Constituição,
tenha metade de seus membros processados por corrupção e que quem
contava os votos a favor da destituição de Dilma tenha sido
condenado por trabalho escravo, sendo apresentado diante da sociedade
como um grande defensor da democracia.
Dilma
Rousseff consolidou e expandiu as reformas sociais dos dois primeiros
governos do PT. Sua política de atendimento sanitário com o
programa “Mais Médicos”; seu inovador e abrangente programa
popular habitacional “Minha Casa, Minha Vida”; seu programa de
obras públicas e de infraestrutura; sua política educacional, com
foco na educação técnica e profissional, mas também com um amplo
desenvolvimento da política cientifica e do programa “Ciência sem
Fronteiras”, que se tornou a maior iniciativa mundial de
internacionalização de estudantes, foram marcos da maior relevância
no desenvolvimento de uma política de inclusão social e de promoção
da cidadania.
Agora,
meu filho, você está se preparando para entrar na faculdade. Há 12
anos, o Brasil tinha cerca de três milhões e meio de estudantes
universitários. Hoje, estamos chegando a quase oito milhões. Em uma
década, a matrícula universitária dobrou. Pouquíssimos países do
mundo conseguiram isso em tão pouco tempo. E o Brasil conseguiu
porque houve uma decisão política fundamental: permitir que
milhares e milhares de jovens de setores populares, filhos e filhas
de trabalhadores, empregadas domésticas, agricultores e
agricultoras, jovens de comunidades indígenas e em particular jovens
negros e negras, ingressassem pela primeira vez no ensino superior. O
Brasil tem hoje um sistema universitário muito melhor que há uma
década. E é muito melhor porque é muito mais justo e democrático,
embora ainda existam muitas coisas que precisamos fazer para melhorar
nossas universidades.
As
elites nunca perdoam aqueles que democratizam o acesso à
universidade, essa instituição que sempre foi considerada por eles
como sua propriedade e privilégio. As elites não gostam que
questionem seu direito sobre o que acreditam que lhes pertence,
embora o tenham roubado.
Dilma
pode ter se empenhado em criar um plano econômico que não
assustasse os setores do poder oligárquico nacional, os
especuladores internacionais (que se fazem ser chamados de
“investidores”) e aqueles que publicam suas opiniões, fazendo-as
passar pela opinião pública. No entanto, também não a perdoaram
por colocar em ação um programa de cuidados básicos de saúde que,
dada a baixa resposta dos médicos brasileiros, trouxe médicos de
Cuba, da Espanha e de toda América Latina. Não a perdoaram por ter
garantido o direito a uma moradia digna para famílias que, ao que
parece, deveriam ter tido apenas a oportunidade de viver em casas de
papelão e lata, empilhadas, correndo o risco de morrer enterradas
pela lama após a primeira chuva de verão. Dilma pode ter colocado
no ministério de economia o banqueiro mais neoliberal do mundo, mas
jamais a perdoaram por ter ousado tirar os pobres do lugar que as
oligarquias lhes impuseram ocupar.
Por
que prosperou o impeachment, que os senadores estão votando
enquanto escrevo estas linhas? Isso, talvez, quase todo o mundo já
saiba. A oposição encontrou uma maneira de trazer um partido aliado
do governo para o seu pelotão golpista. Assim, o PMDB, partido que
sempre esteve no poder nos últimos trinta anos, aderiu sem remorsos
ao golpe institucional, sabendo que seria seu principal beneficiário.
O
PT havia se aliado ao PMDB e a outros partidos conservadores,
possibilitando as articulações que lhe permitiriam chegar ao poder
nas eleições de 2010 e de 2014. A democracia é sempre uma
estratégia de alianças, e aquele que quer ganhar precisa negociar.
Mas o negociar tem seus riscos, especialmente se a negociação é
com um partido venal, repleto de corruptos e cuja virtude democrática
mais brilhante é a de praticar o oportunismo, tentando estar sempre
e em todas as circunstâncias perto do poder. Sob o esmagador impulso
do PT para ganhar as eleições de 2010, Michel Temer integrou a
fórmula presidencial com Dilma Rousseff. O PMDB alcançaria assim
uma enorme influência no terceiro mandato petista. As eleições de
2014 encontraram o PMDB dividido e um setor do partido, liderado pelo
próprio Temer, disposto a não correr o risco de perder os espaços
conquistados. O casamento com o PT se manteve.
As
alianças, filho querido, são o grande mistério da democracia. A
grande oportunidade e também a grande armadilha. Sem alianças é
impossível chegar ao paraíso, o Éden do poder. Mas nunca se
esqueça de que o caminho para o inferno está semeado de alianças
que falharam e de pactos que nunca foram cumpridos. Já no século
XVII, o cardeal Jules Mazarin advertiu que a arte da política é a
arte da traição. Desde então, até hoje, há aqueles que lutam
para mudar a política, inventando uma nova forma de ação coletiva
e de administração daquilo que pertence a todos, do público, do
comum, uma política construída sobre outros valores e outras
práticas. O PT foi o partido que ensinou a muitos da minha geração
que isso era possível. Não acredito que tenhamos conseguido. Ou,
talvez, mal tenhamos começado.
O
que chama a atenção é que ainda existam alguns que se surpreendam
ou se indignem porque Temer traiu Dilma, quando todo o conjunto da
oposição, com a indiferença do Supremo Tribunal Nacional,
encontrou a chave do cofre da felicidade e, simplesmente, inventou um
crime para dar início ao processo de impeachment. Temer não
se tornou um “traidor” diante da oportunidade eminente de chegar
à presidência sem ter sido eleito para isso. Não. Aqui, a ocasião
não faz o ladrão. O PT precisava de Temer e do PMDB para ganhar as
eleições nacionais em 2014. E o PMDB e Temer precisaram de um ano e
quatro meses do governo de Dilma Rousseff para arrancar-lhe o cargo
das mãos. Que isso tenha sido feito a partir de uma mentira, de um
artifício pseudojurídico, de uma farsa ou um grande fiasco, a
poucos importa. Assim é a mágica da maioria. Se 367 deputados dizem
que houve crime e 137 dizem que não houve, o que aconteceu foi um
crime. Talvez a única coisa boa nesse domingo fatídico no
qual os deputados brasileiros deram início à destituição de
Dilma, foi conhecer a cara desses deputados, muitos dos quais sequer
tiveram votos, mas estão lá pela lógica do reboque de candidatos
estrelas. Se dou meu voto, por exemplo, para o palhaço Tiririca,
também dou meu voto a um conjunto secreto e desconhecido de
candidatos bem mais patéticos do que o próprio Tiririca, que serão
eleitos com 20 ou 30 votos. Talvez nada disso tenha a menor
importância para alguém que vota no palhaço Tiririca, afinal, nem
sempre a democracia parece mais séria do que um bom espetáculo
circense.
Por
que se deveria confiar em Michel Temer?
Um
provérbio africano diz que a história não é escrita pelos leões,
mas pelos caçadores. Temer finalmente conseguiu ressurgir das cinzas
de seu até então medíocre, sem brilho e banal exercício do poder.
Uma presença sombria em Brasília que despertava apenas o esporádico
interesse da revista Caras. Até algumas poucas semanas atrás,
parecia tão esperto quanto o ex-presidente argentino Fernando de la
Rua. Hoje, parece mais com Franklin Delano Roosevelt.
O
poder e a imprensa fazem milagres, meu filho.
Machismo?
Uma mulher que exerce suas funções de controle com firmeza e não
se deixa derrubar pela adversidade geralmente é motivo de desprezo
por parte de empresários, políticos e jornalistas misóginos que
não perderão a chance de fazer piadas, criar rumores ou inventar
histórias sobre sua sexualidade. Assim foi tratada Dilma desde que
assumiu seu primeiro ministério no governo de Lula, mais de dez anos
atrás. Mas agora tudo mudou. Temer é casado com uma mulher branca e
loira, 43 anos mais jovem do que ele, “muito feminina”, como a
descrevem, sem outra ambição pessoal além de cuidar do lar. Ele,
um homem vigoroso, potente, de quase oitenta anos, mas cheio de
vitalidade em sua capacidade reprodutiva. Ela, dedicada à sua casa,
prolífera, atenciosa, disciplinada, que sabe ocupar seu lugar. Uma
combinação perfeita. O casal que o Brasil precisa para sair da
crise.
Até
poucas semanas atrás, Michel Temer parecia menos sedutor do que o
Incrível Hulk. Hoje, parece o George Clooney.
O
poder, a misoginia e o Photoshop fazem milagres.
Michel
Temer não é Frank Underwood, embora em Brasília se viva a
dramatização amazônica de House of Cards, com Chespirito e
Cantinflas.
Mas,
filho, desculpe, acho que me desviei do que realmente queria lhe
dizer. O que pretendo explicar-lhe é que não houve improviso,
espontaneidade nem sorte inesperada. Havia um plano: acabar com o
governo Dilma e com o PT. Um plano que seguirá seu curso. Um
plano que não vai acabar até que eles possam, definitivamente,
impedir que Lula chegue à presidência da república pelo voto
popular em 2018. Nessa linha, continuarão as questionadas
investigações do juiz Sérgio Moro, do procurador-geral Rodrigo
Janot, e de todo funcionário, político, delinquente ou delator que
pretenda conquistar o Globo de Ouro da justiça brasileira: mostrar
que Lula é corrupto.
Sim,
eu sei: a corrupção. Cheguei até aqui sem mencionar até agora a
palavra “corrupção”. E não porque quis me esquivar do assunto
que hoje, para muitos, dentro e fora do Brasil, explica por que Dilma
está sendo destituída.
O
sistema político brasileiro está infectado pela corrupção. A
corrupção não é uma anomalia. Ela é um dos seus elementos
constitutivos. É o que impulsiona boa parte dos interesses,
relações, influências e preferências de um número significativo
de representantes do povo, funcionários públicos, juízes e
promotores, membros das forças de segurança pública e,
especialmente, do mundo das grandes corporações. Claro que existem
políticos, deputados, funcionários, juízes, promotores, policiais,
militares e empresários honestos. Mas a corrupção é um dos
combustíveis que acionam o sistema. E talvez o principal erro que
tenhamos cometido na esquerda brasileira e latino-americana nos
últimos anos tenha sido não nos colocar na frente, na vanguarda,
como gostamos de dizer, do combate contra a corrupção. Deveríamos
tê-lo feito cortando pela raiz qualquer responsável por corrupção
entre nossas fileiras, doesse onde doesse, sem nunca deixar de emitir
sinais claros sobre de qual lado estávamos. Nosso apoio a uma
reforma política que evidencie que o atual sistema partidário
promove a promiscuidade entre o mundo privado, os negócios e os
interesses públicos, deveria ter sido muito mais explícito e
determinado.
Deveríamos
ter feito isso sem medo e, especialmente, sem culpa. Não para
convencer os corruptos que existem dentro ou fora da política, que
operam dentro ou fora da justiça, que atuam dentro ou fora das
corporações. Deveríamos tê-lo feito por nosso compromisso com os
setores populares, com as classes médias, com as pessoas que, neste
país e em todo o nosso continente, trabalham honestamente e
constroem sua dignidade cotidiana sem cometer nenhum delito. A imensa
maioria das pessoas que compõe nossas nações são cidadãos e
cidadãs honrados e bons. Os dirigentes de esquerda, quando deixam de
se parecer com elas, começam a se parecer com os empresários,
políticos, juízes e policiais cujo comportamento corrupto desejamos
combater.
O
PT foi o partido brasileiro que, desde o início do primeiro governo
Lula e durante os dois mandatos de Dilma Rousseff, mais combateu a
corrupção. Trata-se de um fato objetivo, concreto e irrefutável.
Nunca se investigou tantos casos de corrupção; nunca a justiça e a
polícia federal tiveram tanta autonomia; nunca tanto dinheiro
roubado foi recuperado para os cofres públicos. Não acho que isso
deva ser considerado um mérito, a menos que o comparemos com o fraco
desempenho na luta contra a corrupção por parte dos governos
anteriores.
O
problema é que, na América Latina, quando a corrupção não é
combatida, torna-se imperceptível. E, por outro lado, quanto mais
ela é combatida, mais parece presente e mais parece invadir tudo.
É
lamentável que o governo tenha pensado que, mesmo sem um relato
sobre o que estava acontecendo, as pessoas entenderiam por osmose (ou
porque haviam sido feitas boas políticas sociais) que o PT era o
principal partido envolvido no combate à corrupção. E como o
relato não foi feito pelo governo, a oposição o fez. Assim foi
dito e boa parte da sociedade acreditou: a corrupção vem do PT e
erradicá-la envolve livrar-se de seu governo.
Conseguiremos
demonstrar agora que essa afirmação é falsa?
Certamente
será difícil, mas precisamos tentar. Não é esse, meu filho, o
único grande desafio que teremos pela frente. Precisaremos enfrentar
um governo neoliberal, cuja composição e estrutura representarão
um enorme retrocesso na história democrática do Brasil. Governarão
agora aqueles que perderam as eleições nacionais há menos de dois
anos. Os mercados, a imprensa dominante e as oligarquias os apoiam
fortemente. Um amplo setor da sociedade, cansado da crise, talvez
também os apoie. Não é preciso ter muita imaginação para prever
o cenário que se aproxima: perda de direitos, retrocesso nas
reformas democráticas, redução dos espaços de participação,
privatização da esfera pública, criminalização do protesto
social e exacerbação da intolerância. É a história se repetindo,
desta vez em sua condição de farsa. Na década de noventa, o
neoliberalismo chegou ao poder pelas mãos do apoio popular. Hoje,
voltará apoiado nas muletas do golpe. Não acredito que a falta de
dignidade nem a decadência ética sejam sentimentos que tirem o sono
de grande parte dos funcionários do novo governo.
Mas
a gravidade do momento que estamos vivendo não pode deixar espaço
para o pesar, a angústia ou a perplexidade. Precisamos chorar nossas
lágrimas em silêncio e nos recompor o mais rápido possível, a fim
de lutar as lutas que ainda precisamos lutar. Hoje é um dia de
infâmia para a democracia no Brasil e na América Latina. Mas
dependerá de nós, em grande parte, que amanhã possa deixar de ser.
Vamos ter de recolher os restos da batalha perdida e seguir em frente
com dignidade e esperança, com convicção e valentia. As bandeiras
da luta pela justiça social e a liberdade humana, a luta pela
igualdade e o bem comum, continuam exigindo que as levantemos com
orgulho e determinação. Os zapatistas dizem, querido filho, que as
bandeiras existem quando existem mãos para fazê-las tremular,
quando há mãos para erguê-las e fazê-las brilhar. Nossas
bandeiras precisam de muitas mãos dispostas a erguê-las novamente e
a lutar por elas. Convencer cada vez mais e mais pessoas, jovens e
não tão jovens, de que essa é uma luta justa e necessária será
uma das grandes batalhas que teremos de lutar. A luta por um mundo
melhor começa aqui e começa agora, construindo um Brasil melhor.
Eu
me formei politicamente na luta contra a ditadura e, em seguida, nas
dinâmicas de mobilização que acompanharam o processo de transição
democrática na Argentina dos anos 80. Aqui no Brasil, muitos jovens
como você se formaram politicamente na luta pelas “Diretas Já”,
exigindo seu direito inalienável de escolher sem mediação o
presidente que deveria governar os destinos da nação.
Você
nasceu à militância na luta contra a destituição injusta de uma
presidenta honesta e valente, democraticamente eleita pelo voto
popular. Eu aprendi a militar exigindo o regresso da democracia que
haviam roubado de nós. Você está aprendendo a militar exigindo que
não seja roubada a democracia que tanto sofrimento, morte e dor nos
custou para conquistar.
Certa
vez, Eduardo Galeano disse que a única coisa que se constrói de
cima para baixo são os poços. O restante, principalmente o restante
das coisas pelas quais vale a pena continuar vivendo, são
construídas de baixo para cima. Nosso futuro é uma delas.
Nestes
dias eu me lembrava daquela noite de outubro de 2002, quando Lula se
consagrou presidente da república diante de José Serra, sucessor de
Fernando Henrique Cardoso. Saímos para caminhar junto com um mar de
gente, você, sua mãe e eu, na praia de Copacabana. O céu estava
nublado de estrelas. As bandeiras vermelhas e as lágrimas de emoção
desenhavam serpentinas de esperança nos rostos e nos corpos de
milhares e milhares de brasileiros e brasileiras, que estavam
dispostos, agora sim, a inventar uma nova nação. Eu carregava você
em meus ombros e não parava de repetir que, depois do seu
nascimento, aquele era, sem sombra de dúvidas, o dia mais feliz da
minha vida.
Os
senadores ainda estão votando e já anoiteceu. Dilma começará a
deixar a presidência em poucas horas. A sessão não terminou, mas
sinto um enorme desejo de voltar e percorrer com minhas lágrimas e
minha bandeira vermelha aquela areia branca e aquele céu milagroso
que nos acariciou quando para você tudo isso talvez parecesse
simplesmente mágico. Venha, vamos juntos outra vez. Não prometo
agora carregar você sobre os meus ombros. Mas o que prometo, querido
filho, é que estarei ao seu lado, aprendendo novamente a lutar,
aprendendo novamente a sonhar.
(Escrito
entre a madrugada e a noite do 11 de maio de 2016, um dia infame)