TRIBUNAL INTERNACIONAL PELA DEMOCRACIA NO BRASIL
SENTENÇA
RELATÓRIO
Nos dias 19 e 20 de julho de 2016, no Teatro Oi Casagrande, situado na Avenida
Afrânio de Melo Franco, 290, cidade do Rio de Janeiro, foi instituído o Tribunal
Internacional pela Democracia no Brasil, com o objetivo específico de debater e julgar o
impedimento da Presidenta da República, Dilma Vana Rousseff, cujo procedimento,
aprovado pela Câmara dos Deputados, está em fase final de julgamento no Senado da
República.
Iniciada a sessão, no dia 19, às 18 horas, pelo Presidente do Tribunal, Prof. Dr.
Juarez Tavares, com a presença do Secretário, Prof. Dr. Leonardo Yarochewsky e das
assistentes, advogadas Gisela Baer e Roberta Miranda, foram chamados para comporem
o Corpo de Jurados os seguintes membros:
ANTILLÓN MONTENEGRO, Walter (Costa Rica), CÁRDENAS GRACIA, Jaime
Fernando (México), COHEN, Laurence (França), FARINAS DULCE, Maria José (Espanha),
FILIPPI, Alberto (Argentina), GÁLVEZ ARGOTE, Carlos Augusto (Colômbia),
SHAHSHAHANI, Azadeh N. (Estados Unidos), TOGNONI, Giani (Itália), VERAS, Raúl
(México).
Igualmente, foram convocados os representantes da acusação e da defesa,
respectivamente, Prof. Dr. Geraldo Prado e Prof.a Dr.a Margarida Lacombe, para
tomarem assento nos seus devidos lugares.
Composto o Tribunal, o Presidente informou que, segundo o ato de sua
convocação, o objetivo do julgamento consistira na emissão de uma decisão
declaratória sobre se o impeachment da Presidenta da República Federativa do Brasil
constitui uma violação da Constituição da República.
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A fim de dar sequência ao julgamento, o Presidente informou ainda acerca do
procedimento adotado, e previamente comunicado às partes e aos jurados, e das
pretensões da acusação e da defesa. A acusação se dispôs a demonstrar a ocorrência da
violação à Constituição. A defesa, por seu turno, se orientou no sentido de apresentar
as razões do Congresso Nacional para afirmar a constitucionalidade do processo.
Compreendidos os objetivos e o procedimento, o Presidente deu a palavra à
acusação e à defesa para a inquirição de suas testemunhas, assim nominadas:
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Ricardo Lodi, Tania Oliveira e Marcia Tiburi,
pela acusação; João Ricardo Wanderley Dornelles, Luiz Moreira, José Carlos Moreira
Filho e Magda Barros Biavaschi, pela defesa.
Posteriormente à oitiva das testemunhas, o Presidente concedeu à palavra,
respectivamente, ao representante da acusação e da defesa, para sustentarem suas
razões no tempo, cada um, de até 40 minutos.
A acusação, desenvolvida pelo Prof. Dr. Geraldo Prado, com base no que consta
de documentos, pareceres, relatórios e depoimento das testemunhas, alegou haver
violação da Constituição da República.
Concluiu a acusação que esses elementos de violação da Constituição da
República e da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa
Rica), observados no processo de impeachment, configuram golpe parlamentar,
também definido pela doutrina como "golpe brando", para distinguir dos golpes
militares comuns na história da América Latina.
A defesa, por seu turno, na voz da Prof.a Dra Margarida Lacombe, igualmente
com base em documentos, pareceres, relatórios e depoimentos, arguiu que o processo
era regular de conformidade com a Constituição.
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Após a exposição exaustiva da acusação e da defesa, registrada devidamente
pelo Secretário do Tribunal, Prof. Dr. Leonardo Yarochewsky, foi declarada pelo
Presidente encerrada a primeira parte dos trabalhos, convocando todos os membros do
Tribunal para sua continuidade no dia seguinte, às 9:00 horas da manhã.
Às 9:00 da manhã do dia 20 de julho, foram reabertos os trabalhos pelo
Presidente e formado o Corpo de Jurados. Antes da votação, perguntou-lhes o
Presidente se estavam aptos a votar ou se desejavam mais algum esclarecimento da
presidência. Sanadas as dúvidas, o Presidente convocou cada um dos jurados para
pronunciar seu voto no tempo de até 20 minutos sobre os seguintes quesitos:
a) O impeachment da Presidenta da República, de conformidade com os termos
de sua tramitação no Congresso Nacional, viola a Constituição da República?
b) No curso do procedimento de impeachment o devido processo legal, cláusula
constitucional com igual respaldo na Convenção Americana de Direitos
Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), foi violado?
c) O procedimento de impeachment, sem a demonstração da prática de crime
de responsabilidade pela Presidenta da República, se caracteriza como golpe
parlamentar?
d) O procedimento de impeachment, caracterizado como golpe parlamentar,
deve ser declarado nulo, bem como seus efeitos?
Em sequência, os jurados passaram à sua decisão, que foi proferida na ordem
seguinte: ANTILLÓN MONTENEGRO, Walter (Costa Rica), CÁRDENAS GRACIA, Jaime
Fernando (México), COHEN, Laurence (França), FARINAS DULCE, Maria José (Espanha),
FILIPPI, Alberto (Argentina), GÁLVEZ ARGOTE, Carlos Augusto (Colômbia),
SHAHSHAHANI, Azadeh N. (Estados Unidos), TOGNONI, Giani (Itália), VERAS, Raúl
(México).
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DECISÃO
O Corpo de Jurados, depois de ouvir a acusação e a defesa, bem como de
examinar os documentos, pareceres e relatórios constantes dos autos, e ouvidas as
testemunhas, por unanimidade, respondeu SIM a todos os quesitos. Dessa forma,
decidiu o Corpo de Jurados julgar procedente a pretensão da acusação para declarar
que o processo de impedimento da Presidenta da República, nos termos da decisão de
sua admissibilidade pela Câmara dos Deputados e do relatório do Senado Federal, viola
todos os princípios do processo democrático e da ordem constitucional brasileira.
O fundamento comum de todos os pronunciamentos ofertados no Tribunal
reside na vacuidade do pedido de impeachment e na inexistência de crime de
responsabilidade ou de qualquer conduta dolosa que implique um atentado à
Constituição da República e aos fundamentos do Estado brasileiro. Também ficou
caracterizada a violação de cláusulas pétreas da Constituição, consagradas nas
convenções e pactos internacionais, relativamente ao contraditório, à ampla defesa e à
necessidade de fundamentação das decisões. Uma vez não preenchidos os pressupostos
constitucionais e legais para o afastamento definitivo da Presidenta da República, o
Corpo de Jurados entendeu, conforme sustentou a acusação, que o impeachment, nesse
caso, se caracteriza como um verdadero golpe ao Estado Democrático de Direito e deve
ser declarado nulo de pleno direito e em todos seus efeitos.
Fazendo um resumo das alegações, a Presidenta da República é acusada no
Senado Federal por dois fatos:
a) A edição de seis decretos não-numerados nos meses de julho e agosto,
caracterizadores de abertura de créditos não autorizada;
b) O inadimplemento financeiro da União com o Banco do Brasil S/A, em virtude
do atraso no pagamento de subvenções econômicas no âmbito do crédito
rural.
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Como se depreende, porém, do art. 85 da Constituição, não há que se confundir
entre violação do orçamento e violação das regras que regem sua execução financeira.
Essas últimas estão vinculadas às normas de administração financeira e não à lei
orçamentária. Uma vez que não são normas orçamentárias, sua violação não pode ser
objeto de crime de responsabilidade. Nesse caso, a conduta será, portanto, atípica. Por
seu turno, os decretos editados pela Presidenta, e contestados no pedido de
impeachment, se destinavam à abertura de créditos suplementares, necessários à
execução orçamentária e estavam todos devidamente autorizados pelo art. 4o da Lei
Orçamentária Anual de 2015. Portanto, não se configuram como créditos abertos sem
autorização. Deve-se salientar, ademais, que tais aberturas de crédito não aumentaram
a despesa da União, uma vez que já elevado, naquela época, seu patamar em mais de
oito bilhões de reais, suficientes para cobrir todos esses créditos suplementares.
Independentemente da autorização de que gozavam, mais de 70% dos créditos
suplementares obedeciam à resolução determinativa do Tribunal de Contas da União.
Isso implica que a Presidenta da República, nesse caso, ao editá-los, estava no estrito
cumprimento de um dever legal e, portanto, agindo licitamente. No que toca ao suposto
inadimplemento da União para com o Banco do Brasil, relativamente à subvenção
agrícola, ficou demonstrado não haver prazo para seu pagamento, o que elimina a
alegação de atraso, se esse pagamento se der em data posterior ao balanço. Ademais,
não se trata de empréstimo, ou de abertura de crédito, mas, sim, de subvenções para
que se efetuassem atos imprescindíveis à consecução da política agrária brasileira. Esses
atos estão de conformidade com as demandas populares, pelas quais foi eleita, o que
corresponde a um dever constitucional e previsto em seu programa de governo. O fato
do atraso do reembolso, porém, é irrelevante, porquanto todos os débitos foram
devidamente quitados, não havendo inadimplemento por parte da União. Mesmo que
o suposto atraso implicasse a exposição de perigo de lesão ao orçamento, o pagamento
efetuado pela União impediu completamente o resultado lesivo, o que caracteriza nítida
hipótese de interrupção voluntária do iter criminis, a elidir também a tipicidade da
conduta. No dizer de Zaffaroni, na “dialética do iter criminis, sempre a etapa posterior
cancela a anterior, e quando a posterior seja uma desistência, o cancelamento se traduz
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em atipicidade da anterior e inexistência da posterior”.1 Uma vez não comprovadas as
alegações do pedido de impeachment, pode-se afirmar que as imputações feitas à
Presidenta da República, de fato, não constituem crime de responsabilidade. Na
verdade, as alegações do pedido de impeachment, por não identificarem nos atos da
Presidenta um grave atentado à Constituição e, portanto, um crime de
responsabilidade, indicam se tratar de meros expedientes ou pretextos para promover-
lhe um processo político e destituí-la do cargo. Inclusive, no caso concreto, três peritos
do Senado Federal, designados pela Comissão Especial, concluíram que não se poderia
imputar à Presidenta um crime de responsabilidade por conta dessas acusações.
A decisão dos jurados de caracterizar essa situação como golpe de Estado
corresponde aos modernos enfoques que a doutrina jurídica constitucional tem dado a
casos semelhantes, não apenas na América Latina, mas, também, em países do
continente europeu e até mesmo nos Estados Unidos. Os golpes de estado não podem
ser reduzidos a revoltas militares, embora essa seja sua forma mais comum. Também
são caracterizados como golpes de estado aqueles atos de destituição dos governantes
eleitos, em desconformidade com as regras constitucionais, cuja violação pode se dar
tanto por decisão do próprio Parlamento quanto da Suprema Corte. Na América Latina,
são paradigmáticos os golpes de estado promovidos pelo Parlamento, desde 1859,
quando, no Peru, o governo foi destituído porque o próprio legislativo se
autoproclamara assembleia constituinte,2 e, mais recentemente, em Honduras e no
Paraguai, com a cassação do mandato dos presidentes eleitos, respectivamente, com o
apoio da Suprema Corte, em 28/03/2009 e 22/06/2012. Mesmo no Brasil, também, em
1961, se operou uma forma dissimulada de golpe de estado, quando o Congresso
Nacional decidiu, atendendo a pressões dos militares, não admitir a posse do Vice-
Presidente eleito, João Goulart, por ocasião da renúncia do Presidente Jânio Quadros, e
resolveu transformar o sistema de governo, de presidencialista em parlamentarista,
com drástica redução de poderes do, então, presidente e em afronta à vontade popular.
1
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de derecho penal, Buenos Aires: Ediar, 2005, p. 655. 2
MICHELENA, Alberto Villacorta. Los limites de la reforma constitucional, Lima: Villacorta, 2003, p. 9
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Fazendo uma análise dos problemas do federalismo americano, mostra Nagel,
por ocasião da crise política no governo Clinton, como seus defensores no Congresso
enfatizaram que seu impeachment, por não se enquadrar numa hipótese constitucional,
se caracterizaria como verdadeiro golpe de estado republicano. Mesmo Nagel, que
aceita o impeachment como instrumento legítimo de destituição presidencial, embora
quase em desuso, igualmente admite que seu desvirtuamento, fora dos casos
constitucionalmente fixados, possa ser assinalado como golpe de estado.3
Da mesma forma, leciona Kauppi que, na Finlândia, ao se proceder à reforma
constitucional, pouco antes da virada do século, se efetivou, também, um verdadeiro
golpe de estado protagonizado pelo parlamento, em tudo semelhante aos
procedimentos anteriores da época da monarquia. Assim, segundo Kauppi, 228 anos
depois de o rei Gustavo III, da Suécia e Finlândia, haver se tornado monarca absoluto
por meio de um golpe de estado, outro golpe, no ano 2000, ainda que em outro sentido,
é realizado pelo parlamento, mediante uma reforma constitucional que despe o
Presidente da República de seus poderes e os transfere ao parlamento e ao governo,
transformando o sistema político semipresidencialista em um sistema semiparlamentar
ou mesmo parlamentarista. Essa transferência de poderes, informa Kauppi, se opera sob
o pretexto de atender aos propósitos da União Europeia, os quais servem de catalizador
para habilitar as elites dirigentes a promoverem e legitimarem a reforma política e a
transformação do sistema. 4
O termo “golpe de estado” não é estranho, portanto, à nomenclatura usada pela
ciência política. No Brasil, esse golpe está assentado não apenas na decisão parlamentar,
senão na legitimação que essa decisão política obtém no Poder Judiciário, que não
enfrenta questões de fundo importantes, como a ocorrência ou não de crime de
responsabilidade ou de violação de princípios constitucionais relacionados ao
contraditório, à ampla defesa e à fundamentação das decisões, e ainda no reforço da
3
NAGEL, Robert. The Implosion of American Federalism, New York: Oxford University Press, 2002, p. 169. 4
KAUPPI, Niilo. Democracy, social resources and political power in the European Union, New York: Manchester University Press, 2005, p. 82.
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desconstrução efetuada pela mídia da própria pessoa da Presidenta, evidenciando, às
vezes de modo disfarçado, às vezes notório, preconceito machista. A desconstrução da
imagem da governante perante os brasileiros, bem como o estímulo veiculado nos
grandes meios de comunicação de massa em relação a sentimentos autoritários,
sedimentados na elite da sociedade brasileira e na ideologia dominante, se refletem
imediatamente nos pronunciamentos parlamentares, que deles se valem para motivar
e fundamentar seus votos na defesa da tradição, da família, da ordem e de suas crenças
religiosas. Por trás dessas manifestações puramente simbólicas estão também
interesses econômicos, vinculados a consórcios e conglomerados internacionais,
estimulados por um amplo programa de privatização. O golpe também incorpora outras
motivações, como o desconforto das elites diante da ascensão social de camadas mais
pobres da população aos recursos da sociedade de consumo, bem como diante da
ampliação de gastos com programas sociais de integração, necessários ao cumprimento
de finalidades expressas na Constituição brasileira (art. 3o, III) em relação à erradicação
da pobreza e da marginalização e à redução das desigualdades sociais e regionais.
É importante ressaltar que, no presidencialismo, diversamente do voto de
desconfiança do sistema parlamentar, não se pode afastar um Chefe de Estado por
questões exclusivamente políticas, porque o processo de impeachment está vinculado
a fundamentos jurídicos estritos, consubstanciados na prática de infrações graves
contra a ordem constitucional – os chamados crimes de responsabilidade –, não
substituídas por argumentos de deficiência de governabilidade ou de insatisfação
popular. A aprovação ou desaprovação política do governo deverá ser resolvida por
meio de eleições livres e diretas e não por ato do Parlamento. A violação dessa condição
implica, mais ainda, a consecução de uma drástica ruptura da ordem democrática,
inadmissível em um sistema regido por uma Constituição republicana. Inclusive, no caso
concreto, sob critérios de ponderação, é clara a desproporcionalidade entre a eleição
da Presidenta e a decisão de a impedir da presidência. Isto porque a Presidenta da
República foi eleita em pleito livre, direto e absolutamente escorreito pela maioria dos
cidadãos brasileiros, com mais de 54 milhões de votos, e essa vontade originária deve
ser, em qualquer caso, respeitada. O processo de impeachment não pode estar fundado
em uma legislação permissiva, mas, sim, dentro de uma legalidade estrita, fixada em
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uma lei que esteja de acordo com a norma da Constituição. A revogação do cargo da
presidência só pode ser levado a cabo pela vontade popular e não por grupos guiados
por interesses particulares.
A democracia, por outro lado, segundo a moderna concepção de Estado, não se
resume exclusivamente à representatividade parlamentar, muitas vezes divorciada das
bases reais da população, mas, sim, da capacidade de possibilitar a integração de todos
os cidadãos nos procedimentos políticos e administrativos, inerentes ao seu
desempenho. Integram também a ordem democrática todas as forças e segmentos
sociais, ainda que não representados no parlamento, e cujo pensamento, vontade,
formas de vida e opções de conduta se vejam manifestados nos setores variados da
esfera pública. Numa sociedade regida por normas, “ninguém pode ser destituído da
iniciativa de, ao mesmo tempo, se realizar a si próprio – e ninguém pode abrir mão da
mesma iniciativa”.5 Uma vez admitidos ao âmbito do Estado democrático, como pessoas
dotadas de dignidade, todos os cidadãos devem ser igualmente garantidos e protegidos
em seus direitos fundamentais, entre os quais o de livremente escolher o chefe da
nação. O sentido do Estado democrático é o de que os “indivíduos emancipados são
autores conjuntos de seu próprio destino. Nas suas mãos está o poder de decidir sobre
as regras e a forma de sua vida coletiva”.6
Ademais, não basta, para a consecução de uma ordem democrática, que se
obedeça apenas à divisão de poderes, ou que se confira a órgãos do Estado as funções
específicas de legislar, administrar, controlar e julgar. Embora a divisão de poderes sirva
a uma melhor distribuição da competência dos órgãos do Estado, não abrange, por si
mesma, a complexidade da vida social moderna, que, diante do cerceamento cada mais
intenso da liberdade, está a exigir uma predominância dos direitos individuais sobre as
razões de estado. Se a democracia é conceituada como o regime de todos e não de uma
elite, oligarquia ou de alguns segmentos privilegiados, ou mesmo de funcionários
vitalícios, autocráticos e intangíveis, ainda que concursados e qualificados, deve-se
5
HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico, tradução de Lumir Nahodil, Coimbra: Almedina, 2004, p. 227. 6
HABERMAS, Jürgen. Faktizität und Geltung, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1994, p. 606
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assegurar a cada pessoa, como pessoa de direito, todas as condições de exprimir sua
vontade como manifestação legítima de cidadania.
Como diz Forst, os cidadãos “não se autocompreendem apenas como pessoas de
direito que vivem numa comunidade jurídica, mas também como membros de um
projeto político-histórico ao qual se sentem obrigados na medida em que este exprima
determinados princípios que consideram dignos de serem defendidos, diante de si
mesmos, de seus concidadãos e de terceiros”.7
Portanto, a execução de um projeto político pelos cidadãos não se faz
simplesmente mediante a imposição de regras ou normas pelo Parlamento, senão
quando essas correspondam ao interesse de todos e os reconheça como pessoas,
mediante um discurso compreensível e capaz de assumir e gerar pretensões de validade.
As pretensões de validade não são meros enunciados políticos, senão formas concretas
de manifestação de conduta, vinculadas à veracidade dos argumentos e à sua
compreensão e aceitação universais.8
Se os atos políticos do Parlamento, assim como de todos os órgãos estatais,
compreendidos na divisão funcional de poderes, como se dá com o impeachment da
Presidenta da República, se exprimem mediante um discurso com pretensões de
validade, sua legitimidade está necessariamente condicionada a que essa pretensão
possa ser, de fato, exercida e, portanto, subordinada aos fundamentos constitucionais
e legais que os autorizam.
A subordinação dos atos políticos, inclusive, das próprias leis, a essa forma de
discurso possibilita o exercício da cidadania, porquanto preenche a condição de que
possam ser objeto de uma crítica constante de seus destinatários e sujeitos de direito,
os quais devem ser respeitados não apenas quando neles consintam, mas, também,
7
FORST, Rainer. Contextos da justiça, tradução de Densilson Luis Werle, São Paulo: Boitempo, 2010, p. 317. 8
HABERMAS, Jürgen. Theorie des kommunikativen Handelns, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1981, p. 68; GEIGER, Daniel. Wissen und Narration, Berlin: Erich Schmidt, 2006, 131.
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quando exprimam seu dissenso. Isso significa que, numa democracia verdadeiramente
participativa, a legitimidade de um ato político não se resume à sua simples aprovação
por maioria parlamentar. Ao contrário, sua validade está sempre sob controle, quer dos
próprios cidadãos, quer de outros órgãos do Estado, como a Suprema Corte, com
competência para os desconstituir. Dessa forma se garante, mediante um processo de
ampla e permanente comunicação entre o poder e os cidadãos, sob o respeito de sua
condição de pessoas humanas dotadas de liberdade de escolha, a consolidação de um
Estado democrático de direito.
Em face do exposto, declaram os Jurados, por unanimidade, que o processo de
impeachment da Presidenta da República viola a Constituição brasileira, a Convenção
Americana de Direitos Humanos e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, e
constitui verdadeiro golpe de estado.
Rio de Janeiro, 20 de julho de 2016
Prof. Dr. JUAREZ TAVARES
Presidente do Tribunal
JURADOS:
ANTILLÓN MONTENEGRO, Walter (Costa Rica),
CÁRDENAS GRACIA, Jaime Fernando (México),
COHEN, Laurence (França),
FARINAS DULCE, Maria José (Espanha),
FILIPPI, Alberto (Argentina),
GÁLVEZ ARGOTE, Carlos Augusto (Colômbia),
SHAHSHAHANI, Azadeh N. (Estados Unidos),
TOGNONI, Giani (Itália),
VERAS, Raúl (México).
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