(Mal)dito instante
Gisálio Cerqueira Filho e Gizlene Neder
O recente pedido de prisão preventiva de Luiz
 Inácio Lula da Silva precipita os acontecimentos, encurta o tempo 
histórico e converte a conjuntura política em ‘conjuntura do instante’.
O
 Brasil vive um momento dramático, sem maiores exageros. Os cientistas 
políticos ultimamente distinguem o instante, diferenciando-o das 
análises estruturais da conjuntura.
Nesta pesam os aspectos econômicos, políticos, jurídicos, históricos.
 No instante (político) pesa um fato qualquer capaz de galvanizar 
corações e mentes já puxadas para acontecimentos que por si só são 
desoladores (desemprego, inflação, crise do PIB, decréscimo da atividade
 econômica, crise política etc.).
Na atualidade brasileira, o momento sobressai pela potência dos 
fatores envolvidos: a corrupção, chamada ontem de “mar de lama” (Governo
 Vargas) e a “subversão da ordem” (Governo João Goulart), para ficarmos 
nos últimos 70 anos, justificaram as intervenções de 1954 e 1964.
De fato, elas esconderam o quanto as forças populares e os pobres 
capitaneados por Getúlio Vargas (PTB), Leonel Brizola (PTB, depois PDT) e
 Luiz Inácio Lula da Silva (PT) agregaram legitimidade à democracia 
brasileira.
Nem sequer concluímos a transição do regime militar para o Estado 
Democrático de Direito e já há aqueles que postulam nas ruas, na mídia, e
 no sistema judiciário, o afastamento peremptório dos pobres: nada de 
bolsas-família e correlatas, nada de pobres nas universidades, nada de 
políticas sociais inclusivas, nada de acesso dos brasileiros menos 
aquinhoados ao sistema de crédito e menos ainda ao mercado consumidor, 
nada de direitos para empregadas domésticas, nada de manutenção ou 
extensão de direitos, sejam previdenciários, sejam trabalhistas; nada de
 educação fundamental universal de tempo integral e laica etc. etc.
André Singer diz que soluções que deixam a base da sociedade sem 
opção têm voo curto (alguns cientistas sociais falam em “voo de 
galinha”, voo baixo e curto para contrastar com “voo de águia”, longo e 
altaneiro). E é para este atoleiro que o tradicionalismo, o elitismo e o
 conservadorismo das forças políticas brasileiras querem levar os 
brasileiros pobres e remediados.
Mas isso não é tudo. País de bacharéis, acabamos por encontrar na 
judicialização dos conflitos sociais uma suposta solução para a 
resolução do Conflito. Cada vez mais o aparelho judiciário é convocado a
 agir, numa doce ilusão que tudo será resolvido nesta instância. Que 
responsabilidade decisória para juízes, desembargadores, ministros dos 
tribunais superiores!…
Neste contexto, há de incidir a inflexão do instante político 
brasileiro, pois o recente pedido de prisão preventiva de Luiz Inácio 
Lula da Silva precipita os acontecimentos, encurta o tempo histórico e 
converte a conjuntura política entendida nos termos tradicionais em 
“conjuntura do instante” (político), como sugere Javier Cercas no seu 
livro “Anatomia do instante” sobre a transição política na Espanha, 
então ainda fortemente influenciada pelo “franquismo”.
Não se trata apenas de uma demanda por prisão preventiva que pede uma
 resposta com certa urgência, muito menos da discussão sobre a aceitação
 do processo propriamente dito com relação à imputabilidade penal por 
lavagem de dinheiro e falsidade ideológica.
A questão aqui é, como sugere o jurista Joaquim Falcão, o debate, 
correlato àquele da saída do franquismo em Espanha, com relação ao livre
 direito de expressão e manifestação que o cidadão tem no Estado 
Democrático de Direito. Ou ainda do efetivo direito à liberdade de 
associação. Inclusive de usar o patrimônio político (seja nacional ou 
internacional) em sua própria defesa fora dos autos?
Inspiremo-nos no exemplo da Turquia contemporânea no que concerne à 
relação do Estado com a imprensa. Ou pensamos que a imprensa hegemônica 
pode ser a única detentora do direito à liberdade de imprensa traduzindo
 o pensamento único na economia para o campo da comunicação? “Prudência e
 caldo de galinha não fazem mal a ninguém”; acautelemo-nos todos, pois 
“pau que bate em Chico bate em Francisco”.
Ainda que estejamos falando da “anatomia” de um instante singular, 
não podemos nos resignar ao exclusivo dos cliques dos promovidos pelas 
novas tecnologias de informática e redes sociais. Mas elas devem ser 
levadas em conta, e não devemos deixar de lado as novas gerações; 
aquelas que não viram 1954, 1964, 1988. Vamos à História para entender 
melhor o abismo a que as forças conservadoras estão empurrando o país.
Aqui, uma primeira advertência: uma das tarefas de maior empenho do 
regime ditatorial civil-militar dos anos 1960-70 foi a construção do 
PENSAMENTO ÚNICO.
Trata-se de uma intervenção institucional profunda, mesmo que, como 
era de se esperar, não tenha sido plenamente exitosa; caso contrário, 
nem teríamos a reorganização do campo democrático plural, divergente e 
vigoroso como temos hoje.
O pensamento único, monolítico, fundado no autoritarismo moderno 
(desenvolvimentista, nacionalista e empreendedor; envolto na ideologia 
da segurança nacional), foi esculpido cuidadosamente nos currículos de 
formação estratégica como: a Escola Superior de Guerra (ESG), as Escolas
 de Alto Comando e Estado Maior da Forças Armadas, as Academias 
Militares, inclusive das Polícias Militares, as Faculdades de Direito, 
as Faculdades de Comunicação, e as de Educação.
Identificar e reconhecer este fato é importante para entendermos como
 um esforço de democratização das instituições policiais feito pelos 
constituintes do campo democrático em 1988, que criou o Ministério 
Público para acompanhar, conter os arbítrios do judiciário e das 
polícias, torna-se ele próprio instrumento de arbítrio em que as 
práticas jurídicas antigas (do Antigo Regime, onde estava presente a 
processualística da Inquisição) estão sendo atualizadas e apropriadas na
 conjuntura presente e produzindo efeitos neste exato instante 
político).
Esta prática implica primeiro julgar (o juiz, o policial ou o 
promotor chegarem a um veredicto) e depois buscar as provas (ver Carlo 
Ginzburg: “O Juiz e o Historiador. Anotações à Margem do Caso Sofri”. 
Nele, Ginzburg analisa a lógica processual criminal contra um militante 
das Brigadas Vermelhas. Sua análise identifica, em pleno século XX, a 
permanência dos procedimentos dos tempos da Inquisição).
Mas onde está o PENSAMENTO ÚNICO no campo jurídico brasileiro? Aí 
entra a história das Faculdades de Direito no Brasil. Desde sua criação,
 em 1827, nos marcos da apropriação do pragmatismo político pombalino, 
de inspiração benthamiana, as duas Faculdade de Direito (uma no
 norte, em Olinda, depois Recife; outra no sul, o Largo São Francisco em
 São Paulo) apresentaram variações políticas que permitiam escolhas 
políticas, ideológicas e filosóficas divergentes.
A Escola do Recife abria-se para atualizações e apropriações da 
Ilustração. A Academia de São Paulo reproduziu o autoritarismo e o 
pragmatismo de forma mais fechada, politicamente. No início da 
República, a intelligentsia do Recife desloca-se para o Rio de 
Janeiro e se apresenta na formação das Faculdades de Direito criadas na 
primeira metade do século XX.
Os juristas da Capital Federal atuavam nos dois principais centros de
 formação universitária: a Faculdade Nacional de Filosofia e a Faculdade
 Nacional de Direito. Com o Golpe Civil-Militar de 1964, não ficou 
“pedra sobre pedra” nas duas faculdades (Nacional de Filosofia e 
Nacional de Direito).
O PENSAMENTO ÚNICO, do Largo São Francisco em São Paulo, e o seu 
autoritarismo, tornaram-se prevalecente, hegemônico em todo o país.
O mesmo ocorreu na Academia Militar de Agulhas Negras; o pensamento militar inspirado na Escuela de lãs Americas,
 mantida no Panamá pelos EUA para formar militares latino-americanos 
(aqueles que deram os golpes nos anos 1960-70) impôs-se como PENSAMENTO 
ÚNICO nos meios militares.
Talvez o que diferencie a conjuntura atual e, sobretudo, o instante 
(político) em relação a 1964, seja, quem sabe, a clareza da 
oficialidade, seja a postura profissional, pois no plano internacional a
 estratégia de desestabilização política de governos contrários aos 
interesses norte-americanos e europeus tem sido a declaração de guerras 
(Iraque, Afeganistão, Líbia, Ucrânia, Síria, por exemplo).
E também certa consciência de que o que as classes dominantes querem,
 no momento, é fazer das forças armadas meros capitães-de-mato para 
contenção das chamadas classes perigosas – os pobres que as elites 
querem afastar da política.
Em relação à formação universitária em Comunicação Social, há que se 
lembrar que sua criação e designação nasceram com a reforma 
universitária de 1969, conhecida como Reforma Passarinho.
Do mesmo modo, altos investimentos foram aplicados para a formação no
 campo dos estudos sobre Educação (Filosofia e Psicologia), tendo em 
vista a erradicação do escolanovismo, de Anísio Teixeira e Darcy 
Ribeiro, para que o PENSAMENTO ÚNICO contasse com o forte apoio do campo
 religioso, especialmente do campo católico, que fez oposição por 
décadas a fio (desde 1930) ao ensino público de qualidade, laico, em 
horáriointegral. Esta luta está em curso e subjaz ao instante que 
vivemos.
Por tudo isso, (mal)dito instante … pois o Brasil está vivo e se 
mexe, uma parte considerável de brasileiros não quer confusão, nem ódio,
 quer sim trabalhar e participar para a grandeza de todos e todas. 
Brasil bem dito. Não vamos jogar fora esse patrimônio.
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