Em uma tacada, sob a justificativa
de necessidade de preservar a estabilidade
financeira na Europa, medidas ilegais foram tomadas
em maio de 2010, a fim de garantir o aparato que
permitiria aos bancos privados livrar-se da perigosa
bolha, isto é, da grande quantidade de ativos
tóxicos em sua maioria títulos desmaterializados e
não comercializáveis que abarrotava contas fora
de balanço (1) em sua escrituração contábil. O
objetivo principal era ajudar os bancos privados a
transferir tais ativos tóxicos para os países
europeus.
Uma das medidas adotadas para
acelerar a troca de ativos de bancos privados e
acomodar a crise bancária foi o programa SMP (2),
mediante o qual o Banco Central Europeu (BCE) passou
a efetuar compras diretas de títulos públicos e
privados, tanto no mercado primário como secundário.
A operação relativa a títulos públicos é ilegal,
pois fere frontalmente o Artigo 123 do Tratado da
União Europeia (3). Tal programa constitui apenas
uma entre várias outras medidas não-padronizadas
adotadas na época pelo BCE.
A criação de um Veículo de
Propósito Especial, uma companhia baseada em
Luxemburgo, constituiu outra medida implementada
para transferir ativos tóxicos desmaterializados dos
bancos privados para o setor público. Acreditem ou
não, países europeus (4) se tornaram sócios de tal
companhia privada, uma sociedade anônima chamada
Facilidade para Estabilidade Financeira Europeia
(EFSF) (5). Os países se comprometeram com
bilionárias garantias, inicialmente no montante de
440 bilhões de euros (6), que logo em 2011 subiram
para 779.78 bilhões de euros (7).
O verdadeiro propósito de tal
companhia tem sido disfarçado pelos anúncios de que
ela iria providenciar empréstimos para países,
fundamentados em instrumentos financeiros, não em
dinheiro efetivo. Cabe mencionar que a criação da
EFSF foi uma imposição do FMI (8), que lhe forneceu
uma contribuição de 250 bilhões de euros (9).
Juntos, o programa SMP e a
companhia EFSF representaram os complementos
cruciais para o esquema (10) de alívio de ativos,
necessário para concluir o suporte aos bancos
privados iniciado desde o início de 2008, por
ocasião da crise financeira nos Estados Unidos e
Europa.
Desde o início de 2009 os bancos
privados vinham demandando por mais suporte público
para descarregar a excessiva quantidade de ativos
tóxicos que abarrotava suas contas fora de
balanço. O atendimento a essa demanda poderia se
dar tanto mediante compras diretas governamentais
como por meio de transferências para companhias
independentes de gerenciamento de ativos. Essas duas
soluções restaram atendidas pelo SMP e pela EFSF, e
as perdas relacionadas aos ativos tóxicos estão
sendo repartidas entre os cidadãos europeus.
A troca de ativos tóxicos de
bancos privados para uma companhia por meio de
simples transferência, sem o devido pagamento e a
operação de compra/venda, seria ilegal frente às
normas contábeis. O EUROSTAT modificou tais regras
(11) e permitiu a liquidação de operações
conduzidas mediante troca de títulos, justificando
tal ato por circunstâncias específicas da
turbulência financeira.
A localização da companhia EFSF em
Luxemburgo visou, principalmente, escapar da
aplicação das leis do Direito Internacional.
Ademais, a EFSF é financiada em grande parte pelo
FMI, cuja colaboração seria ilegal, de acordo com
seu próprio Estatuto. No entanto, o FMI também
modificou suas regras para proporcionar a ajuda de
250 bilhões de euros à EFSF (12).
De acordo com a Lei (13) que
autorizou a sua criação, a empresa EFSF de
Luxemburgo poderia delegar a gestão de todas as suas
atividades relacionadas aos instrumentos
financeiros; seu conselho de diretores poderia
delegar as suas funções, e seus associados, os
Estados-Membros, poderiam delegar a tomada de
decisões relacionada aos fiadores para o Grupo de
Trabalho do Eurogrupo (EWG).
Naquela época, tal grupo de
trabalho sequer possuía um presidente em tempo
integral (14). A Agência de Gestão da Dívida alemã
(15) é quem realmente opera a EFSF, e, em conjunto
com o Banco Europeu de Investimento, presta apoio ao
funcionamento operacional da EFSF. É evidente a
falta de legitimidade da EFSF, já que é realmente
operada por um órgão diverso. EFSF é agora o
principal credor Grécia.
Os instrumentos financeiros
utilizados pela EFSF são os mais arriscados e
restritos, desmaterializados, não comercializáveis,
tais como Floating Rate Notes tipo Pass-trough,
arranjos cambiais e de hedge, e outras atividades de
co-financiamento que envolvem o administrador
britânico Wilmington Trust (London) Limited (16)
como o instrutor para a emissão de títulos
restritos, não-certificados, que não podem ser
comercializados em nenhuma bolsa de valores
legítima, pois não obedecem às regras exigidas para
títulos de dívida soberana. Este conjunto de
instrumentos financeiros tóxicos representa um risco
para os Estados-Membros, cujas garantias podem ser
exigidas para pagar por todos os produtos
financeiros da empresa luxemburguesa.
Um escândalo de grande proporção
teria ocorrido em 2010, se esses esquemas ilegais
tivessem sido revelados: a violação do Tratado da
UE, as alterações arbitrárias nas regras processuais
por parte do BCE, Eurostat e do FMI, bem como a
associação dos Estados-Membros à companhia privada
de propósito especial em Luxemburgo. Tudo isso
apenas para resgatar bancos privados, às custas de
um risco sistêmico para toda a Europa, devido ao
comprometimento dos Estados-Membros com garantias
bilionárias que cobririam ativos tóxicos
problemáticos não comercializáveis e
desmaterializados.
Este escândalo nunca aconteceu,
porque em maio de 2010 a mesma reunião
extraordinária do Conselho de Assuntos Econômicos e
Sociais da Comissão Europeia (17), que discutiu a
criação da companhia luxemburguesa EFSF como
Veículo de Propósito Especial, deu uma importância
especial para o pacote de apoio à Grécia, fazendo
parecer que a criação daquele esquema era para a
Grécia e que, ao fazê-lo, estariam garantindo a
estabilidade fiscal para a região. Desde então, a
Grécia tem sido o centro de todas as atenções,
persistentemente ocupando as manchetes dos
principais veículos de comunicação de todo o mundo,
enquanto o esquema ilegal que efetivamente tem
suportado e beneficiado os bancos privados permanece
nas sombras, e quase ninguém fala sobre isso.
O relatório anual do Banco da
Grécia mostra um acentuado crescimento nas contas
fora de balanço relacionadas a ativos financeiros
em 2009 e 2010, em quantidades muito maiores que o
total de ativos do Banco, e esse padrão continua nos
anos seguintes. Por exemplo, no Balanço Contábil do
Banco da Grécia de 2010 (18), o total de ativos em
31/12/2010 (19) era de 138,64 bilhões de euros. As
contas fora de balanço naquele ano chegaram a
204,88 bilhões. Em 31/12/2011, enquanto o total dos
ativos do Balanço somou 168,44 bilhões de euros, as
contas fora de balanço atingiram EUR 279,58
bilhões.
Assim, a transferência de ativos
tóxicos dos bancos privados para o setor público tem
sido um grande sucesso. Para os bancos privados. E o
Sistema da Dívida (20) tem sido a ferramenta para
acobertar isso.
A Grécia foi trazida a este
cenário depois de vários meses de pressão
persistente por parte da Comissão Europeia, devido a
alegações acerca de existência de um excessivo
déficit orçamentário, além de inconsistências em
dados estatísticos (21). Passo a passo, um grande
problema foi criado em torno dessas questões, até
que em maio de 2010 o Conselho de Assuntos
Econômicos e Financeiros declarou: na sequência da
crise na Grécia, a situação nos mercados financeiros
é frágil e havia um risco de contágio (22). E assim
a Grécia foi submetida ao pacote que incluiu a
interferência da Troika com as suas severas medidas
inseridas em planos de ajuste anual, e um peculiar
acordo bilateral, seguido por empréstimos da EFSF
lastreados em instrumentos financeiros de risco.
Economistas gregos, líderes
políticos e até mesmo algumas autoridades do FMI
haviam proposto que uma reestruturação da dívida
grega iria propiciar resultados muito melhores do
que aquele pacote. Isso foi ignorado.
Graves denúncias acerca da
superestimação do déficit orçamentário que tinha
sido a justificativa para a criação do grande
problema em torno da Grécia e a imposição do pacote
em 2010 foram igualmente ignoradas.
Sérias denúncias feitas por
especialistas (23) gregos sobre a falsificação de
estatísticas também foram desconsideradas. Seus
estudos mostravam que o montante de 27,99 bilhões de
euros sobrecarregou as estatísticas de dívida
pública em 2009 (24), por causa da elevação falsa em
determinadas categorias (tais como DEKO, obrigações
hospitalares e SWAP Goldman Sachs). Estatísticas de
anos anteriores também haviam sido afetadas por 21
bilhões de euros de swaps Goldman Sachs distribuídos
ad hoc em 2006, 2007, 2008 e 2009.
Apesar de tudo isso, sob uma
atmosfera de urgência e ameaça de contágio,
acordos peculiares foram implementados desde 2010 na
Grécia; não como uma iniciativa grega, mas tal como
conformado pelas autoridades da UE e do FMI,
vinculados ao cumprimento de um conjunto completo de
medidas econômicas, sociais e políticas
prejudiciais, impostas pelos Memorandos (25).
A análise dos mecanismos (26)
inseridos nesses acordos mostra que eles não
significaram benefício algum à Grécia, mas serviram
aos interesses dos bancos privados, em perfeita
consonância com as medidas de resgate ilegais
aprovadas em maio de 2010.
Em primeiro lugar, o empréstimo
bilateral usou uma conta especial no BCE, por meio
da qual os empréstimos desembolsados pelos países
e KfW, os credores, iriam direto para os bancos
privados que detinham títulos de dívida
desvalorizados, cotados muito abaixo de seu valor
nominal. Dessa forma, aquele acordo bilateral
peculiar foi arranjado para permitir o pagamento
integral para aqueles detentores de títulos,
enquanto a Grécia não obtiver qualquer benefício. Em
vez disso, os gregos terão de pagar de volta o
capital, altas taxas de juros e todos os custos.
Em segundo lugar, os empréstimos
da EFSF resultaram na recapitalização de bancos
privados gregos, além de trocas e reciclagem de
instrumentos de dívida. A Grécia não recebeu
qualquer empréstimo verdadeiro ou apoio da EFSF.
Através dos mecanismos inseridos nos acordos com a
EFSF, dinheiro efetivo nunca chegou à Grécia, mas
apenas os ativos tóxicos desmaterializados que lotam
a seção fora de balanço do Banco da Grécia.
Por outro lado, o país tem sido
forçado a cortar despesas sociais essenciais para
pagar, em dinheiro, as altas taxas de juros e todos
os custos abusivos, e também terá que reembolsar o
capital que nunca recebeu. O contrato prevê que tal
pagamento pode ser feito também por meio de entrega
de patrimônio estatal privatizado.
É preciso buscar as razões pelas
quais a Grécia foi escolhida para estar no olho do
furacão, submetida a acordos e memorandos ilegais e
ilegítimos, servindo de cenário para encobrir o
escandaloso resgate ilegal de bancos privados desde
2010.
Talvez essa humilhação se deva ao
fato de que a Grécia tem sido historicamente uma
referência mundial para a humanidade, pois ela é o
berço da democracia, o símbolo da ética e dos
direitos humanos. O Sistema de Dívida não pode
admitir tais valores, pois não possui o menor
escrúpulo em provocar danos a países e povos para
obter seus lucros.
O Parlamento grego já instalou a
Comissão da Verdade sobre a dívida pública e nos deu
a chance de revelar esses fatos, tão necessários
para repudiar o Sistema de Dívida que tem subjugado
não só a Grécia, mas muitos outros países, sob a
espoliação do setor financeiro privado. Somente por
meio da transparência e do acesso à verdade os
países irão derrotar aqueles que querem colocá-los
de joelhos.
Já é chegado o tempo para que a
verdade prevaleça, o tempo para colocar os direitos
humanos, a democracia e a ética acima de quaisquer
interesses inferiores. Esta é uma tarefa para a
Grécia, a ser cumprida já.
Notas:
(1) Fora de balanço significa
uma seção à margem da contas normais que fazem parte
do balanço contábil, onde ativos problemáticos, tais
como títulos desmaterializados, não
comercializáveis, são informados.
(4) Países Membros da zona do Euro
ou Sócios da EFSF: Reino da Bélgica, República
Federal da Alemanha, Irlanda, Reino da Espanha,
República da França, República da Itália, República
de Chipre, República de Luxemburgo, República de
Malta, Reino da Holanda, República da Áustria,
República de Portugal, República da Eslovênia,
República da Eslováquia, República da Finlândia e
República Helênica.
(5) A companhia privada EFSF foi
criada como um instrumento do MECANISMO DE
ESTABILIZAÇÃO FINANCEIRA EUROPEIA (EFSM):
(8) Depoimento de Dr. Panagiotis
Roumeliotis, representante da Grécia junto ao FMI,
para o Comité da Verdade sobre a Dívida Pública,
no Parlamento Grego, em 15 de junho de 2015.
(10) HAAN, Jacob de; OSSTERLOO,
Sander; SCHOENMAKER, Dirk. Financial Markets and
Institutions A European Perspective (2012) 2nd
edition. Cambridge, UK. Asset relief schemes, Van
Riet (2010) Página 62.
(12) Most Directors (
) called
for the Fund to collaborate with other institutions,
such as the Bank for International Settlements, the
Financial Stability Board, and national authorities,
in meeting this goal. In IMF (2013) Selected
Decisions. Disponível em:
http://www.imf.org/external/pubs/ft/sd/2013/123113.pdf Página 72
(Acessado em 4 Junho de 2015)
(13) EUROPEAN FINANCIAL STABILITY
FACILITY ACT 2010. EFSF Framework Agreement, Artigos
12 (1) a, b, c, d, e (3); Artigo 10 (1), (2) e (3);
Artigo 12 (4); Artigo 10 (8).
(14) Somente a partir de Outubro/
2011 em diante, de acordo com a Decisão do Conselho
de 26/Abril/2012, o Grupo de Trabalho do Eurogrupo
(EWG) passou a ter um presidente em tempo integral:
OFFICIAL JOURNAL OF THE EUROPEAN UNION (2012)
Official Decision. Disponível em: