THEOTONIO DOS SANTOS
Muitos leitores do meu blog devem perguntar porque não intervi ainda na análise da questão egípcia. Confesso que não tenho ainda uma opinião formada sobre a situação atual. A primeira coisa que me incomoda é a divulgação massiva da grande imprensa internacional em torno da “revolução” egípcia que estaria em marcha. Até hoje em mais de 50 anos de acompanhamento sistemático da imprensa internacional e nacional (são iguais) nunca vi a imprensa internacional dar destaque a informações favoráveis a transformações sociais progressistas. Pelo contrário: toda vez que um processo de massas emerge ela se coloca contra, exceto naqueles nos pquais há um evidente interesse dos Estados Unidos e seus aliados. No caso egípcio parece que lhes interessa sobretudo a ausência de uma liderança política com uma clara crítica ao acordo Egípcio-Israelense. É também um sinal de segurança a presença do exército egípcio como principal garantidor do processo em marcha.
Contudo, eu não creio que seja tão evidente o controle da situação pelos governos dos EE.UU. e Israel. A verdade é que o movimento fundamentalista islâmico - que os EE.UU., a Arábia Saudita e outros regimes e grupos oligárquicos financiaram - entrou num choque aberto contra os EE. UU. cada vez mais difícil de controlar. Por outro lado, eles tendem a crescer e enraizar-se na região e em vários países de maioria islâmica. Lembro-me no distante 1985, quando comemorávamos no Egito os 30 anos da Conferencia de Bamdung, o susto dos socialistas e nacionalistas árabes, então no poder em vários países, diante do crescimento do movimento fundamentalista islâmico. Nesta ocasião eu tive a oportunidade de expor a minha opinião de que este era um movimento de forte raiz popular, composto muito mais por profissionais e técnicos do que por populações “lumpen” como muitos tendiam a crer. Depois veio o que vimos, o movimento se enraizou sobretudo a partir da luta contra invasão soviética do Afeganistão, erro que tive a honra de combater, alertando os próprios soviéticos sobre a gravidade desta decisão que revelava um grande desprezo pela importância histórica do islamismo e sua força de mobilização num mundo ideologicamente dominado por uma ideologia “ocidental” cada vez mais alienada do processo de afirmação do processo de descolonização em marcha e da afirmação histórica das nações excluídas do sistema de poder mundial. Deu no que deu. A maioria tende a subestimar estes fenômenos culturais, o que é um erro profundo. Cada vez está mais claro que as civilizações históricas tendem a reviver num momento de crise geral da ideologia da modernidade que confunde civilização e ocidente. Elas são ao mesmo tempo, uma força articuladora de processos de integração regional que se opõem cada vez mais à hegemonia estadunidense sobre o mundo. Neste plano, o Egito de Nasser, que participou ativamente da Conferencia de Bamdung em 1955 representava claramente esta dimensão histórica ao ser uma das primeiras civilizações conhecidas naquela época. Na mesma reunião participavam a China e a Índia, a Indonésia e o Movimento de libertação africano, além da Iugoslávia. Milhares de anos de civilizações de fortes raízes que estiveram sob domínio colonial pelo Ocidente imperialista. E que agora finalmente renasciam com a constituição de poderosos estados nacionais cujo papel no mundo seria incontestávelmene necessário em algumas décadas mais.
Estas forças históricas tão colossais se submeterão indefinidamente ao domínio imperialista? Claro que não, muito mais num momento histórico em que se superou a guerra Fria contra a qual se opuseram estas novas lideranças revolucionárias chamando à constituição de um Movimento de países Não Alinhados. Tese vitoriosa em 1989 com autodestruição da União Soviética, impondo unilateralmente o final da guerra fria a um Estados Unidos perplexo que, com o apoio desta imprensa que agora quer transformar a luta contra governos ditatoriais pró-americanos em uma bandeira dos Estados Unidos, conseguiu reverter a seu favor o fim do seu principal instrumento de dominação hegemônica depois da II Guerra Mundial, isto é, a união do Ocidente contra a “ameaça” soviética oriental.
Esperemos que se dissolva um pouco a natureza para saber exatamente o significado e extensão destas revoltas populares em marcha. Já sabemos historicamente que a democracia é o caminho que mais nos aproxima do socialismo. Toda vez que as massas estão nas ruas contra a opressão é dever de todo verdadeiro revolucionário apoiá-las e buscar orientar suas lutas contra os seus verdadeiros inimigos. Quanto a isto não há dúvidas. Mas precisamos conhecer bem a disposição destes inimigos.
Sabemos claramente que os anos de opressão imperialista tem provocado uma radicalização do sentimento popular anti-norte-americano não só nesta região mas em várias partes do mundo. Infelizmente, no Oriente Médio, este sentimento é hoje liderado pelas forças ligadas ao fundamentalismo islâmico. Elas passam fortemente pelo problema palestino e o aprofundamento de uma visão paranóica do mundo em Israel. Uma população judia em diminuição aumenta a cada dia a sua violência e radicalização contra o mundo árabe em crescimento demográfico, econômico, cultural e intelectual. Nada indica que esta prepotência levará a um final feliz. Nem se pode esperar que a comunidade judia norte-americana consiga impor indefinidamente a idéia de que os Estados Unidos têm que sustentar esta prepotência israelita.
Enquanto isto, as experiências de processos democráticos na região indicam que o poder imperialista e seus aliados locais não estão dispostos a respeitar eleições dominadas por forças fundamenalista islâmicas. Mas ao mesmo tempo as ações norte americana, européia e Ocidental em geral se definem claramente contrárias às maiorias que contestam sua dominação.
Como dizia Roosevelt: Somoza é um filho da puta, mas é o nosso filho da puta. Quiseram sustentá-lo até o último minuto como grande parte dos tiranos que apoiam e garantiram no poder. Mubarak teve o desgosto de provar este ditado do presidente dos Estados Unidos. Que tentou mantê-lo no poder até setembro mas em seguida aceitou derrubá-lo diante de sua prepotência. O comando passou ao exército sob direção de um pró-americano e acordo com Israel. As eleições viriam em setembro, assim também uma nova constituição. Serão muitas lutas para submeter o povo egípcio a uma visão histórica contrária ao que ele pensa. Se ganham as novas forças emergentes e os operários que mantiveram seis meses de greves antes dos grandes movimentos de massa explodirem. Até quando a imprensa mundial vai continuar acompanhando tão de perto os acontecimentos? Até quando haverá uma clara disposição de respeitar as maiorias que se proporão a governar o país?
Fonte: Operários egípcios em manifestação. Fonte da foto: Diário Liberdade.