PRÓLOGO
Theotonio dos Santos
Theotonio dos Santos
O livro de Mariana Bruce que o leitor vai apreciar está escrito no meio de uma encruzilhada histórica de um continente inteiro: A América do Sul ( e de certa forma todas as Américas e em especial a América Latina e o Caribe) se encontra num turbilhão econômico, social, cultural e sobretudo político caracterizado por uma grande ofensiva das forças sociais que estiveram ausentes do centro do cenário político por cerca de duas décadas.
Os trabalhadores em suas várias formas econômicas que incluem desde os assalariados mais ou menos acomodados (operários ou trabalhadores de serviços), subempregados, pequenos e médios proprietários e camponeses ) se veem diante de uma enorme massa de desempregados ou trabalhadores eventuais ou mesmo indigentes produzidos pelas politicas neoliberais a serviço do grande capital financeiro. A concentração de riqueza na mão desta minoria gera não somente uma profunda desigualdade social mas sobretudo uma situação de indigência e baixas condições de vida para uma população cada vez mais significativa.
Neste contexto, a base da sociedade vive em constante sobressalto e muitos setores só conseguem sobreviver às custas de atividades mais ou menos ilegais num mundo de violência impressionante.
Pode-se compreender assim a clivagem que se estabelece entre a base destas sociedades e as condições de vida dos setores de renda mais alta, mesmo que ainda insuficientes para garantir pelo menos os serviços básicos como educação, saúde, transporte, moradia que não podem ser pagos com os níveis de renda existentes e que os governos abandonam para prover de serviços um pouco mais efetivos a uma porcentagem ainda minoritária da população.
Pode-se entender como a produção e reprodução de um sistema econômico e social tão concentrador e excludente produz também um crescente movimento desde baixo para cima na busca de encaminhar soluções que o sistema político criado pela minoria relativamente satisfeita com a ordem social existente não pode oferecer.
As massas excluídas não se compõem de indivíduos isolados sem eira nem beira. Em várias regiões do país as famílias que compõem estas massas têm um passado histórico fundado em formas de convivência comunitárias. Desde as comunidades indígenas que alcançaram altíssimos níveis civilizatórios, passando pelas comunidades africanas que desenvolveram formas culturais extremamente criativas, incluindo vários setores mestiços que foram configurando fortes processos culturais locais e regionais para sobreviver neste ambiente hostil com algum grau de otimismo e que deram substância a movimentos chamados superficialmente de “populistas” . Creiam ou não os donos do poder existente, estamos diante de uma poderosa subjetividade: um ser em si que vem se tornando um ser para si no confronto com as forças que pretendem conservar esta abominável ordem existente.
É assim que se afirma um poder crescente desde abaixo que se impõe num vasto movimento histórico diante das mais violentas formas de imposição do poder existente. Este se articula com poderosas forças internacionais cuja riqueza está amplamente fundada na exploração destas condições negativas, transformando-se num elemento cada vez mais essencial da estrutura de poder destas sociedades e das justificações de sua conservação. Faz-se cada vez mais difícil ocultar o caráter historicamente superado destas expressões de um capitalismo dependente, concentrador, desigual e excludente.
Manter este estado de coisas num mundo que se caracteriza pela ampliação gigantesca da capacidade humana de produzir suas condições de sobrevivência através da revolução constante das suas forças produtivas é um sonho (ou pesadelo) que produzem as classes dominantes que lutam por um programa político conservador desta ordem social injusta e opressiva. Nele, a democracia ocupa um lugar perigoso. Ela pode ser um instrumento de controle das massas subjugadas a esta ordem odiosa mas pode também ser um instrumento de “empoderamento” dessas massas. Aí está a ferida fundamental do momento que vivemos:
Somos a maioria esmagadora que vive em permanente sobressalto e toda vez que avançamos encontramos a oposição armada, as mais diversas formas de opressão e de limitação da capacidade política destas forças insubordinadas de uma maneira ou outra contra a ordem existente.
Eis porque se busca desqualificar a capacidade do “povo” exercer a democracia. Ele não é reconhecido como uma maioria de cidadãos e sim como uma espécie inferior à qual não se pode nunca entregar o poder de decisão. Existe mesmo uma “teoria” dominante que separa a dimensão eleitoral do exercício do poder. Aceita-se oespetáculo de ser eleito pelo povo para dar-lhe uma espécie de “satisfação” moral e tornar os governos legítimos. Mas, segundo eles, os verdadeiros “estadistas” são aqueles que governam com os conhecimentos técnicos e nunca com os trabalhadores que estão mergulhados no seu entorno de miséria e “ignorância”que, segundo eles, condena a democracia a uma verdadeira “encenação”.
Contra estas condições de reprodução de sua miséria e suas dificuldades, setores cada vez mais amplos de nossas sociedades descobrem a necessidade de se mobilizar e de se organizar para conquistar e garantir seus direitos mais elementares a uma sobrevivência digna. É assim como os movimentos sociais vão assumindo um papel crescente na nossa vida política. Eles se desenvolveram em várias formas de expressão e ganharam um papel muito significativo nas lutas contra as ditaduras. Eles foram lançados numa nova etapa de mobilização nos processos de transição democrática que foram vencendo em todo o continente.
Estas vitórias colocam novos problemas. Este gigantesco movimento salta para uma nova etapa: a gestão do Estado que antes representava tão diretamente a opressão. Mas como assegurar que os políticos eleitos respeitem seus compromissos estabelecidos sobretudo nos períodos eleitorais? Está aberta uma nova fase de organização, até de institucionalização destes movimentos que lhes permita ser pelo menos um co-gestor do Estado transformando-o de fato numa expressão do ideal democrático: o governo do povo.
Mariana Bruce nos faz um acertado relato das questões teóricas e das experiencias históricas em que este ideal cada vez mais perseguido pelas maiorias vai se impondo na América Latina. Ela nos dá uma visão histórica das lutas democráticas na Venezuela que colocam com muita clareza estes dilemas desde o acordo que sucede a derrubada da ditadura militarizada (1958) e impõe uma democracia pactuada que exclui as grandes maiorias sociais e as novas expressões da revolta popular que leva à vitória de Hugo Chávez e o novo compromisso que ele assume com estas maiorias excluídas econômica, social, política e culturalmente. Este novo pacto se converte na proposta de um Socialismo do Século XXI que inclui a consolidação de um poder popular respeitado pelo Estado através de sucessivas reformas institucionais e de uma prática de participação popular extremamente nova por seu dinamismo e sua extensão e profundidade.
Nossa autora não somente traça este quadro macro em seus capítulos iniciais mas sobretudo estuda uma experiência concreta a partir da práxis de um conselho comunitário dos mais antigos e persistentes. Trata-se de uma experiência impressionante de organização de um poder popular na Venezuela, que se inicia sob a ditadura e que se transforma num poderoso ente político e ideológico a partir da proposta bolivariana formulada e aplicada por Hugo Chávez. Apesar de ter vivido pessoalmente grande parte destas experiências - ou talvez por isto mesmo – leio com emoção a descrição desta experiência e agradeço à cientista social a empatia que ela transmite com este povo maravilhoso. Creio que o leitor sentirá também estas emoções.
Através deste livro, o leitor terá oportunidade de compreender a força dos movimentos sociais latino americanos em plena efervescência em toda a região, dentro ou fora do poder estatal. A autora atualmente dá continuidade aos seus estudos sobre o tema deste livro com um grupo de estudiosos sobre a questão do poder popular em toda a região. Este é um tema que tende a converter-se numa veia essencial de nossa Ciência Social e numa referência fundamental de nossa vida política e do dia a dia de nosso povo.