segunda-feira, 13 de julho de 2009

As lições de Honduras

Conta-se uma reveladora brincadeira entre os presidentes latino-americanos:

- Sabe por que não existem golpes de Estado nos Estados Unidos?

- Não!

- Porque nos Estados Unidos não existe embaixada dos Estados Unidos.


Texto de Theotonio dos Santos*

Além do mais, sabemos que os golpes nos Estados Unidos se dão através do assassinato, puro e simples, dos seus presidentes (como no caso de John Kennedy) ou com a ajuda do Supremo Tribunal para impedir a recontagem dos votos (como no caso Bush).

Apesar destes e de muitos outros precedentes, vemos agora os líderes do Partido Democrata indignar-se com a negativa de recontagem de votos no Irão, acusado de ser uma tremenda ditadura.

No entanto, qual a lição das Honduras? Pela primeira vez na história, os Estados Unidos apoiam a condenação de um golpe de Estado na América Latina, permitindo que se realize uma condenação unânime de um acto de força militar em todas as organizações internacionais.

Isso quer dizer que desta vez a embaixada americana não participou do acto de força? Desgraçadamente não. De maneira indiscreta, um deputado da direita hondurenha revelou publicamente a conspiração que mantinham os golpistas com a embaixada dos EUA. Fê-lo na memorável sessão de primitivo disfarce democrático no qual se realizou a "eleição" do "sucessor" do presidente Zelaya, que havia renunciado segundo a carta falsa lida por este bisonho "sucessor", que se esqueceu de forjar uma carta de renúncia do vice-presidente, a quem caberia substituir o presidente sequestrado. Essa sessão foi transmitida pela Radio Globo de Honduras, última a ser silenciada pelos "democratas" do "governo provisório".

De acordo com este deputado, o embaixador dos EUA, que aprovava a mobilização golpista, havia estado contra a realização do golpe antes da consulta popular não-vinculante, chamada de "referendo" pelo Supremo Tribunal hondurenho e pela grande imprensa internacional, que busca desesperadamente justificá-lo.

Seria muito difícil acreditar que o governo dos EUA estivesse ausente da conspiração num país que serviu de base às suas organizações militares mercenárias que desestabilizaram o governo legítimo dos sandinistas. Nesse mundo de contra-informação no qual vivemos, escutei o locutor da emissora de TV Globo News, no Brasil, dizer que as organizações militares dos ‘contras' hondurenhos lutavam contra os "guerrilheiros" nicaraguenses.

Todos sabemos os altos custos de tais operações de guerra de baixa intensidade, as quais podem servir de modelo de corrupção para as organizações de defesa dos direitos humanos e transparência. O Congresso dos Estados Unidos ocupou-se de nos revelar detalhes tenebrosos da operação triangular contra o governo sandinista, comandada pelo então vice-presidente dos Estados Unidos, George Bush: o governo dos EUA expandiu as operações do narcotráfico a partir da Colômbia, através dos ‘contras' assentados nas Honduras, Costa Rica e El Salvador. Os seus lucros serviam para financiar as operações e, ao mesmo tempo, para comprar armas para o eterno ‘inimigo' público dos EUA: o governo do Irã.

Apesar das suas diferenças, os líderes religiosos iranianos tinham acordado com o então candidato George Bush prolongar o sequestro dos norte-americanos prisioneiros na sua embaixada em Teerão, a fim de desmoralizar Carter e permitir a vitória eleitoral de Reagan em troca dessa ajuda militar secreta.

Imediatamente surgem as acusações de que tal tipo de informação faz parte de teorias "conspiratórias". Ainda assim, estamos a referir-nos aos factos revelados pelas investigações do Congresso dos Estados Unidos, o que, tudo indica, acredita mesmo nas conspirações, exitosas ou fracassadas.

Essas conclusões reforçam-se com as posições de Ramsey Clark e do Bispo Filipe Teixeira, da Diocese de São Francisco de Assis (Boston), na sua mensagem urgente ao presidente dos Estados Unidos:

"Levando em consideração:

1) A colaboração próxima dos militares dos EUA com o exército hondurenho, manifestada pelo treino e exercícios em comum;

2) O papel da base militar Soto Cano, agora sob o comando do coronel Richard A. Juergens, que era director de Operações Especiais durante o sequestro em Fevereiro de 2004 do presidente haitiano Jean-Bertrand Aristide;

3) Que o chefe do Estado Maior do exército hondurenho, general Romeo Vásquez, foi treinado na Escola das Américas dos EUA;
 
4) Que o secretário adjunto de Estado Thomas A. Shannon Jr. e o embaixador dos EUA nas Honduras, Hugo Llorens, estavam plenamente informados dos conflitos que conduziam ao golpe militar;

Concluímos que o governo dos Estados Unidos tem responsabilidade no golpe e está obrigado a exigir que o exército hondurenho regresse à ordem institucional e evite acções criminosas contra o povo hondurenho.

Portanto, insistimos, pela paz na região, que o presidente Barack Obama corte imediatamente toda a ajuda e as relações com o exército das Honduras e suspenda todas as relações com o governo das Honduras, até que o presidente constitucional regresse ao seu posto".

Em resumo, o currículo norte-americano nas Honduras mostra a dificuldade de confiar nos seus desígnios democráticos na região. Talvez, a volta dos sandinistas e dos revolucionários salvadorenhos ao governo depois de anos de brutal repressão aos seus países tenha ensinado algo à diplomacia norte-americana, ainda vacilante em condenar definitivamente o golpe de Estado hondurenho.

A imprensa internacional expressa vacilações ao chamar Zelaya de presidente "deposto" e o golpista Roberto Micheletti de presidente "interino"; ao chamar a consulta não-vinculante, proposta por Zelaya para criar uma Constituinte, de "referendo" para perpetuar-se no poder. Coisas que não se puderam escutar sobre o presidente assassino da Colômbia que busca o terceiro mandato presidencial, e nem se escutavam sobre as pretensões de reeleição de Fujimori, Menem ou Fernando Henrique Cardoso.

É também revelador entre as suas motivações a ausência de referência na imprensa à falsa carta de renúncia do presidente Zelaya, lida no parlamento para justificar a eleição do seu sucessor. É cómico que se afirme que esse senhor foi eleito por unanimidade quando não compareceram a essa sessão os deputados governistas ameaçados de prisão. Por fim, entre outras insidiosas tergiversações, pretende-se a existência de um confronto mais ou menos igual entre os defensores armados do golpe e os desarmados manifestantes contrários ao mesmo.

Tudo isso e as declarações da secretária Hillary Clinton sobre o necessário respeito das instituições hondurenhas que possuem acordos com os EUA mostram-nos que há divergências dentro do governo dos EUA. Com o fantástico apoio internacional que conta o presidente Zelaya, está a procurar obrigá-lo a uma negociação espúria com os golpistas. Até hoje a justiça venezuelana não aceita definir como golpe de Estado o que realizaram os gorilas locais em 2002. Imaginem o que vão propor nas Honduras...

Zelaya e o povo hondurenho têm muitas dificuldades pela frente, mas não devem se acovardar diante delas. Não têm porque abaixar a cabeça frente aos mercenários e os seus chefes, nem frente aos golpistas que são desprezados por toda a humanidade, apesar dos apoios abertos, inclusive disfarçados, dos grandes meios de comunicação.

Theotonio dos Santos é licenciado em Sociologia e Política e em Administração Pública (UFMG). Mestre em Ciência Política (UnB). Doutor em Economia por Notório Saber - UFMG e UFF e já publicou 30 livros.

Traduzido por Gabriel Brito, jornalista.

Publicado em Correio da Cidadania


ver a versão original em espanhol.

Nenhum comentário:

Busca