É preciso limitar o poder econômico sobre o processo político
Theotonio dos Santos
O
cientista social Theotonio dos Santos possui graduação em Sociologia e
Política e em Administração Pública pela Universidade Federal de Minas
Gerais (1961), mestrado em Ciência Política pela Universidade de
Brasília (1964), doutorado em Economia Por Notório Saber pela
Universidade Federal de Minas Gerais (1985) e doutorado em Economia Por
Notório Saber pela Universidade Federal Fluminense (1995). Atualmente é
coordenador da cátedra UNESCO/ONU sobre Economia Global e
Desenvolvimento Sustentável (REGGEN) e professor emérito da Universidade
Federal Fluminense. Tem experiência nas áreas de Economia e Relações
Internacionais, com ênfase em Economia Política Internacional, atuando
principalmente nos seguintes temas: América Latina, Economia Mundial,
Neoliberalismo, Globalização e Desenvolvimento Sócio-Econômico.
Economia Fluminense:
Como viu a proposta do governo para a reforma política e aprovação, até
aqui, de algumas medidas como a instituição do voto aberto em todas as
decisões do Congresso?
Theotonio dos Santos: É positiva a iniciativa de dar ênfase à reforma política,
mas
o governo não está sustentando convenientemente a proposta. Com relação
ao voto aberto, isto é muito relativo. Na União Soviética, a primeira
expressão de avanço democrático foi o voto passar a ser secreto. Havia
acusações de
que o voto aberto seria controlado pelo governo. Não creio que seja uma conquista democrática o voto aberto.
EF: E quanto aos movimentos que tomaram as ruas do país, expressam um avanço da democracia?
TS:
Falta um pouco mais de clareza a esses movimentos. Mais experiência
política, lideranças. Falta um projeto político. Nota-se alguma
dificuldade de criar um movimento politicamente articulado. Em todo
caso, só o fato de as pessoas estarem nas ruas já é uma fonte positiva
de pressão. Mas o próprio governo deveria estar comandando os grandes
movimentos de massa, porém não se mostra disposto a enfrentar forças an-
tipopulares. Não há clareza também (da parte do governo) sobre a reforma
política
que pretende implementar. Os projetos apresentados ao Congresso não
estão polarizando. Quando se fez as Diretas Já havia um projeto definido
dentro do Congresso, uma votação com
pressão
popular. Havia um objetivo político bem definido. Na medida em que não
exista um projeto que polarize, não se pode canalizar a iniciativa
popular para uma direção progressista.
EF: Como deveria, então, ser o projeto
de reforma política?
TS: O grande problema da reforma política é o peso das classes dominantes
sobre
as eleições. O ponto central seriao financiamento público das
campanhas. Fechar listas partidárias pode ser interessante, mas como o
país não tem tradição partidária relativamente forte, me parece um pouco
artificial. Teríamos
que fazer um esforço muito forte para localizar
os indivíduos que podem representar os melhores interesses. Deixar para
os partidos estabelecerem a hierarquia dos cargos pode ser bom ou não,
dependerá da capacidade dos partidos para representar realmente posições
políticas
coerentes, coisa que não vemos neste momento. Talvez, se a ideia da
lista for bem definida, se consiga fortalecer as eleições parlamentares,
o que
é importante, porque o governo continua sendo mais visualizado
pela população como sendo de centro-esquerda, e o parlamento mais à
direita. Não diria que a solução da lista é absolutamente necessária e
será realmente progressis-
ta. Poderá ser, se houver definição dos partidos diante da população. Mas atualmente é muito difícil chegar a isso.
EF: Não seria o caso de promover uma
reforma partidária?
TS: Sim, mas ela não pode ser feita
de cima para baixo. Reforma partidária
tem que ser feita pelo povo. Não sendo
assim é paternalismo. Supõe-se que os
partidos criam o Estado, não o contrário.
́
EF: Como vê o referendum proposto
pelo governo?
T.S: Pode ajudar a levar o debate para
a
base. Polarizar. É preciso fazer com que todos os setores se sintam
participantes da discussão. Isso, sim, trará legitimidade a uma reforma
política. Mais importante que o produto das discussões é que a população
sinta que está criando algo a seu favor. Ademais, a mobilização e a
consciência são partes fundamentais de qualquer decisão política. Se
discute muito se Cuba é uma democracia, por exemplo. Mas como manter um
gover-
no por mais de 50 anos com a maior potência do mundo a 200 milhas? A Constituição cubana foi discutida por toda a população.
EF: Como se deu este processo?
TS:
Houve milhares de projetos de iniciativa popular e das assembléias
locais, das comunidades. A Constituição cubana é do povo cubano. Ele
criou. Ninguém pode chegar e fazer o que bem entende. O grau de
participação da base é impressionante e se manifesta nas políticas
públicas. Toda a população participa do sistema de saúde-família. Não é
só o médico de família, é a famí-
lia com o médico. É um movimento de
integração de toda a sociedade. Na educação, quando foi feito o projeto
de alfabetização, que se conseguiu fazer em
dois anos, havia a
determinação de que cada cubano só poderia alfabetizar dois
compatriotas, para que todos os demais pudessem alfabetizar. Então, foi
uma
mobilização fantástica, inclusive com jovens e crianças, que
depois receberam seus títulos. Isso é democracia, não esta sem
participação do povo.
EF: Os políticos têm sido um alvo recorrente nas manifestações. Está correto?
TS:
Na verdade, a culpa é de todo um sistema que atua para impedir a
participação popular. Seguramente o povo vai se equivocar menos do que
meia dúzia de pessoas que formam, por exemplo, o Conselho de Política
Monetária do Banco Central (Copom/BC), que direciona o uso de grande
parte dos recursos públicos para o setor financeiro. Não foram eleitos e
propõem políticas em nome de uma teoria econômica manifestamente
equivocada.
Manejam uma teoria econômica rasa, para usar um termo delicado. Não têm
nenhuma condição de provar suas propostas, como a ideia de que se
contém a inflação aumentando a taxa de juros. As metas de inflação podem
variar 40% para cima ou para baixo e ainda conseguem errar! Será que
essas pessoas decidindo pelo povo são melhores que o próprio povo? Estou
seguro que a população saberá se conduzir. Por exemplo, um dos maiores
anseios populares é a possibilidade de derrubar políticos que não
correspondem à expectativa. A eleição não é para sempre.
EF: Como vê a atuação do Superior Tribunal Federal na condução do processo do chamado “mensalão”?
TS: Considero absurdo estabelecer o princípio de que não precisa haver prova
material. Se formos para esse lado, com as cabeças que temos dirigindo o setor
jurídico do país, estaremos entregando o povo ao domínio de interesses não
populares. E não há participação na escolha dos representantes da lei. Mesmo
nos Estados Unidos, até os xerifes são chefes de polícia local escolhidos pela
população.
Não tenho nenhum medo da decisão do povo. Prefiro um erro popular do
que do 1% que governa a maior parte da riqueza desse país.
EF:
Qual sua avaliação de um sistema político que praticamente exige
alianças entre correntes totalmente opostas ideologicamente em nome da
governabilidade?
TS: Diminuir a influência do poder
econômico na eleição já seria um grande passo, embora não definitivo,
pois nas votações parlamentares esse poder volta a se manifestar.
Depois, há que se estabelecer uma visão mais ampla dos meios de
comunicação. Não pode um país dar preferência na distribuição de
recursos gigantescos a um pequeno grupo e reprimir, por exemplo, as
televisões comunitárias.
EF: Como se pode fazer em liberdade de expressão se as formas mais populares são reprimidas?
TS:
Nossa legislação é muito limitativa de uma verdadeira democratização
dos meios de comunicação. Impressionante ver como o Estado financia os
inimigos dos interesses populares. Falar mal do governo diariamente já é
criticável, mas há deformação e calúnia. Julgamento e condenação antes
da justiça. Não é possível que o Estado patrocine isso. A reforma
política tem que ser posta neste contexto, de diminuir e até erradicar o
poder econômico sobre o processo político, sobre os meios de
comunicação, sobre as decisões mais importantes.
EF: Então a reforma política precisaria caminhar com outras reformas, como a da comunicação?
TS: Certamente. O ideal seria uma transformação em profundidade. E mobilizar a população. Aumentar o poder local.
EF: O voto distrital aponta neste sentido?
TS:
Num país tão grande como o nosso, não será expressão realmente
comunitária, mas da burguesia local. É discutível até que ponto
representará os interesses mais avançados. Mas se for o caso de haver
aspirações populares nesta direção é muito importante que haja uma
combinação entre o voto distrital e o voto proporcional. Um sistema mais
equitativo precisa articular esses dois elementos, até para que o
debate local não se sobreponha ao nacional. E aí temos que retirar as
restrições à representatividade local, regional e nacional. Há deputados
na França que são ao mesmo tempo prefeitos. Se o representante local
precisa abdicar da atuação nacional, tudo fica exclusivamente voltado
para o local. Mas se há um vaso comunicante entre os dois níveis é mais
possível criar um ambiente para discussão das grandes questões nacionais
e também regionais.
Há dois casos em que dois tribunais eleitorais
conseguiram retirar governos regionais eleitos. Jacson Lago, governador
eleito do Maranhão, foi acusado de compra de votos e perdeu o mandato
para a família Sarney. E ficou por isso mesmo. Ele acabou morrendo e foi
afetado profundamente por esta situação. Outro caso foi em Rondônia,
pela mesma acusação de compra de votos. Nessas situações locais pode
acontecer qualquer coisa sem que o país seja informado, pois a mídia é
centrada nas questões nacionais. Mesmo que se conseguisse provar que a
eleição foi afetada por isso, que se fizesse outra eleição. Se continuar
esse jogo em torno do Poder Judiciário, que está totalmente preservado
politicamente, quando boa parte da população não acredita nele – todos
sabem que o pobre é que vai para a prisão –, não caminharemos em boa
direção.
EF: Qual o papel da mídia nesse contexto?
TS:
A mídia criou a ideia de que a democracia depende de um equilíbrio
muito estranho dos poderes. O parlamento é quem deve orientar sua
representação. O setor jurídico já decide sobre quem será candidato e
agora escolhe quem vai continuar no poder. É um moralismo muito falso,
conduzido por gente reconhecidamente corrupta.
A Igreja matou muita
gente por ser protestante, feiticeiro ou judeu. E os tribunais da
Inquisição não tinham nada de progressistas. Dar ao tribunal esse poder
não vejo como positivo. Se ao menos tivessem participação popular. Mas
está se defendendo algo semelhante ao Copom, o governo de uma
tecnocracia.
EF: O governo teria cacife para conduzir a reforma política na direção correta?
TS:
Se houver pressão popular sim, mas não se sabe como se maneja esses
interesses. Não é essa coisa horizontal. Existem sistemas de controle
tecnicamente já muito bem dominados.
EF: Até do referendum o governo precisou recuar...
TS:
Há também a tentativa de identificar referendum com o fascismo. Se
podemos falar em democracia em países como os Estados Unidos, há uma
grande quantidade de referenduns e ninguém fala em fascismo. Não é
verdade histórica, embora possa ter sido usado eventualmente por
governos fascistas. O referendum é instrumento de participação popular.
Todas as correntes de pensamento avançadas defendem o referendum nas
questões mais relevantes. Mas é preciso polarizar, criar uma situação
política. O referendum poderia ser um dos itens principais das
manifestações e não está sendo. A própria questão da reforma política
poderia ser objeto de referendum, mas isto nem está sendo discutido.
EF: O que mais faltou nas manifestações de rua?
TS:
Ninguém colocou, por exemplo, a questão do poder financeiro no país,
que consome mais de 30% do gasto público para pagar juros. Um país que
tem superávit fiscal há muitos anos não pode ter uma dívida crescente,
mas o superávit é insuficiente para pagar sequer os juros, aí se lançam
mais títulos da dívida publica. Isto só é aceito porque o sistema
financeiro manda no país e predomina a ideia de que precisamos manter
superávit fiscal para sustentar gente que não faz nada. O sistema
bancário brasileiro não financia o investimento produtivo. Apenas
algumas formas de consumo.
Então para que serve esse sistema financeiro e porque o país tem que sacrificar
tantos
recursos para o pagamentos de juros? É um paradoxo conter o consumo
para controlar a inflação em um país no qual 70% da população consome
muito
pouco. No entanto é declarado como objetivo da política
econômica. É um contexto geral que está dominado por uma falsa
consciência, orientada para um sistema claramente contrário aos
interesses da grande maioria.
EF: Este não é um fenômeno mundial?
TS:
Quando a classe dominante começa a perder poder econômico, também perde
poder ideológico. São nessas oportunidades que se fazem as
transformações. Há um setor da classe dominante mundial que compreende
que
esse grau de dominação que ela está exercendo sobre o resto do mundo tem
um limite. E está pensando inclusive em reformular o capitalismo na direção de
um
“neoprogressismo” semelhante ao que abriu caminho para reformas
bastantes positivas no final do Século XIX e início do Século XX. No
entanto, houve uma reação muito grande e tivemos que passar por duas
grandes guerras para que houvesse o grande avanço verificado após a
Segunda Guerra.
EF: A atual conjuntura vai nessa direção?
TS: O episódio da Síria mostra que o sistema vigente está perdendo poder.
São
situações que podem criar um ímpeto transformador em nível mundial, mas
também uma guinada para a direita. O ato de que os maiores países
chamados
emergentes, reunidos no Brics, estejam ampliando sua
participação na economia mundial, em grande parte reforçados pelo
protagonismo chinês, aparece como uma forma de sistematizar esses
interesses que estão emergindo de forma critica em relação à estrutura
da economia mundial. A última reunião dos Brics cobrou a não realização
da reforma do FMI, decidida no âmbito do G20. Poderíamos ter avançado
mais, pois vejo que se o sistema não responder a esses anseios teremos
uma situação muito perigosa, sobretudo por causa do poder de destruição
que eles possuem: o controle das armas.
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