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segunda-feira, 14 de abril de 2014

Entrevista de Theotonio dos Santos para a Revista de Economia Fluminense

É preciso limitar o poder econômico sobre o processo político
 

Theotonio dos Santos



O cientista social Theotonio dos Santos possui graduação em Sociologia e Política e em Administração Pública pela Universidade Federal de Minas Gerais (1961), mestrado em Ciência Política pela Universidade de Brasília (1964), doutorado em Economia Por Notório Saber pela Universidade Federal de Minas Gerais (1985) e doutorado em Economia Por Notório Saber pela Universidade Federal Fluminense (1995). Atualmente é coordenador da cátedra UNESCO/ONU sobre Economia Global e Desenvolvimento Sustentável (REGGEN) e professor emérito da Universidade Federal Fluminense. Tem experiência nas áreas de Economia e Relações Internacionais, com ênfase em Economia Política Internacional, atuando principalmente nos seguintes temas: América Latina, Economia Mundial, Neoliberalismo, Globalização e Desenvolvimento Sócio-Econômico.



Economia Fluminense: Como viu a proposta do governo para a reforma política e aprovação, até aqui, de algumas medidas como a instituição do voto aberto em todas as decisões do Congresso?

Theotonio dos Santos: É positiva a iniciativa de dar ênfase à reforma política,
mas o governo não está sustentando convenientemente a proposta. Com relação ao voto aberto, isto é muito relativo. Na União Soviética, a primeira expressão de avanço democrático foi o voto passar a ser secreto. Havia acusações de
que o voto aberto seria controlado pelo governo. Não creio que seja uma conquista democrática o voto aberto.

EF: E quanto aos movimentos que tomaram as ruas do país, expressam um avanço da democracia?

TS: Falta um pouco mais de clareza a esses movimentos. Mais experiência política, lideranças. Falta um projeto político. Nota-se alguma dificuldade de criar um movimento politicamente articulado. Em todo caso, só o fato de as pessoas estarem nas ruas já é uma fonte positiva de pressão. Mas o próprio governo deveria estar comandando os grandes
movimentos de massa, porém não se mostra disposto a enfrentar forças an-
tipopulares. Não há clareza também (da parte do governo) sobre a reforma
política que pretende implementar. Os projetos apresentados ao Congresso não estão polarizando. Quando se fez as Diretas Já havia um projeto definido
dentro do Congresso, uma votação com
pressão popular. Havia um objetivo político bem definido. Na medida em que não exista um projeto que polarize, não se pode canalizar a iniciativa popular para uma direção progressista.

EF: Como deveria, então, ser o projeto
de reforma política?

TS: O grande problema da reforma política é o peso das classes dominantes
sobre as eleições. O ponto central seriao financiamento público das campanhas. Fechar listas partidárias pode ser interessante, mas como o país não tem tradição partidária relativamente forte, me parece um pouco artificial. Teríamos
que fazer um esforço muito forte para localizar os indivíduos que podem representar os melhores interesses. Deixar para os partidos estabelecerem a hierarquia dos cargos pode ser bom ou não, dependerá da capacidade dos partidos para representar realmente posições
políticas coerentes, coisa que não vemos neste momento. Talvez, se a ideia da lista for bem definida, se consiga fortalecer as eleições parlamentares, o que
é importante, porque o governo continua sendo mais visualizado pela população como sendo de centro-esquerda, e o parlamento mais à direita. Não diria que a solução da lista é absolutamente necessária e será realmente progressis-
ta. Poderá ser, se houver definição dos partidos diante da população. Mas atualmente é muito difícil chegar a isso.

EF: Não seria o caso de promover uma
reforma partidária?

TS:
Sim, mas ela não pode ser feita
de cima para baixo. Reforma partidária
tem que ser feita pelo povo. Não sendo
assim é paternalismo. Supõe-se que os
partidos criam o Estado, não o contrário.
 ́
EF: Como vê o referendum proposto
pelo governo?

T.S: Pode ajudar a levar o debate para
a base. Polarizar. É preciso fazer com que todos os setores se sintam participantes da discussão. Isso, sim, trará legitimidade a uma reforma política. Mais importante que o produto das discussões é que a população sinta que está criando algo a seu favor. Ademais, a mobilização e a consciência são partes fundamentais de qualquer decisão política. Se discute muito se Cuba é uma democracia, por exemplo. Mas como manter um gover-
no por mais de 50 anos com a maior potência do mundo a 200 milhas? A Constituição cubana foi discutida por toda a população.

EF: Como se deu este processo?

TS: Houve milhares de projetos de iniciativa popular e das assembléias locais, das comunidades. A Constituição cubana é do povo cubano. Ele criou. Ninguém pode chegar e fazer o que bem entende. O grau de participação da base é impressionante e se manifesta nas políticas públicas. Toda a população participa do sistema de saúde-família. Não é só o médico de família, é a famí-
lia com o médico. É um movimento de integração de toda a sociedade. Na educação, quando foi feito o projeto de alfabetização, que se conseguiu fazer em
dois anos, havia a determinação de que cada cubano só poderia alfabetizar dois compatriotas, para que todos os demais pudessem alfabetizar. Então, foi uma
mobilização fantástica, inclusive com jovens e crianças, que depois receberam seus títulos. Isso é democracia, não esta sem participação do povo.



EF: Os políticos têm sido um alvo recorrente nas manifestações. Está correto?

TS: Na verdade, a culpa é de todo um sistema que atua para impedir a participação popular. Seguramente o povo vai se equivocar menos do que meia dúzia de pessoas que formam, por exemplo, o Conselho de Política Monetária do Banco Central (Copom/BC), que direciona o uso de grande parte dos recursos públicos para o setor financeiro. Não foram eleitos e propõem políticas em nome de uma teoria econômica manifestamente
equivocada. Manejam uma teoria econômica rasa, para usar um termo delicado. Não têm nenhuma condição de provar suas propostas, como a ideia de que se contém a inflação aumentando a taxa de juros. As metas de inflação podem variar 40% para cima ou para baixo e ainda conseguem errar! Será que essas pessoas decidindo pelo povo são melhores que o próprio povo? Estou seguro que a população saberá se conduzir. Por exemplo, um dos maiores anseios populares é a possibilidade de derrubar políticos que não correspondem à expectativa. A eleição não é para sempre.

EF: Como vê a atuação do Superior Tribunal Federal na condução do processo do chamado “mensalão”?

TS: Considero absurdo estabelecer o princípio de que não precisa haver prova
material. Se formos para esse lado, com as cabeças que temos dirigindo o setor
jurídico do país, estaremos entregando o povo ao domínio de interesses não
populares. E não há participação na escolha dos representantes da lei. Mesmo
nos Estados Unidos, até os xerifes são chefes de polícia local escolhidos pela
população. Não tenho nenhum medo da decisão do povo. Prefiro um erro popular do que do 1% que governa a maior parte da riqueza desse país.

EF: Qual sua avaliação de um sistema político que praticamente exige alianças entre correntes totalmente opostas ideologicamente em nome da governabilidade?

TS: Diminuir a influência do poder econômico na eleição já seria um grande passo, embora não definitivo, pois nas votações parlamentares esse poder volta a se manifestar. Depois, há que se estabelecer uma visão mais ampla dos meios de comunicação. Não pode um país dar preferência na distribuição de recursos gigantescos a um pequeno grupo e reprimir, por exemplo, as televisões comunitárias.

EF: Como se pode fazer em liberdade de expressão se as formas mais populares são reprimidas?

TS:
Nossa legislação é muito limitativa de uma verdadeira democratização dos meios de comunicação. Impressionante ver como o Estado financia os inimigos dos interesses populares. Falar mal do governo diariamente já é criticável, mas há deformação e calúnia. Julgamento e condenação antes da justiça. Não é possível que o Estado patrocine isso. A reforma política tem que ser posta neste contexto, de diminuir e até erradicar o poder econômico sobre o processo político, sobre os meios de comunicação, sobre as decisões mais importantes.

EF: Então a reforma política precisaria caminhar com outras reformas, como a da comunicação?

TS: Certamente. O ideal seria uma transformação em profundidade. E mobilizar a população. Aumentar o poder local.
 
EF: O voto distrital aponta neste sentido?

TS: Num país tão grande como o nosso, não será expressão realmente comunitária, mas da burguesia local. É discutível até que ponto representará os interesses mais avançados. Mas se for o caso de haver aspirações populares nesta direção é muito importante que haja uma combinação entre o voto distrital e o voto proporcional. Um sistema mais equitativo precisa articular esses dois elementos, até para que o debate local não se sobreponha ao nacional. E aí temos que retirar as restrições à representatividade local, regional e nacional. Há deputados na França que são ao mesmo tempo prefeitos. Se o representante local precisa abdicar da atuação nacional, tudo fica exclusivamente voltado para o local. Mas se há um vaso comunicante entre os dois níveis é mais possível criar um ambiente para discussão das grandes questões nacionais e também regionais.
Há dois casos em que dois tribunais eleitorais conseguiram retirar governos regionais eleitos. Jacson Lago, governador eleito do Maranhão, foi acusado de compra de votos e perdeu o mandato para a família Sarney. E ficou por isso mesmo. Ele acabou morrendo e foi afetado profundamente por esta situação. Outro caso foi em Rondônia, pela mesma acusação de compra de votos. Nessas situações locais pode acontecer qualquer coisa sem que o país seja informado, pois a mídia é centrada nas questões nacionais. Mesmo que se conseguisse provar que a eleição foi afetada por isso, que se fizesse outra eleição. Se continuar esse jogo em torno do Poder Judiciário, que está totalmente preservado politicamente, quando boa parte da população não acredita nele – todos  sabem que o pobre é que vai para a prisão –, não caminharemos em boa direção.

EF: Qual o papel da mídia nesse contexto?

TS: A mídia criou a ideia de que a democracia depende de um equilíbrio muito estranho dos poderes. O parlamento é quem deve orientar sua representação. O setor jurídico já decide sobre quem será candidato e agora escolhe quem vai continuar no poder. É um moralismo muito falso, conduzido por gente reconhecidamente corrupta.
A Igreja matou muita gente por ser protestante, feiticeiro ou judeu. E os tribunais da Inquisição não tinham nada de progressistas. Dar ao tribunal esse poder não vejo como positivo. Se ao menos tivessem participação popular. Mas está se defendendo algo semelhante ao Copom, o governo de uma tecnocracia.

EF: O governo teria cacife para conduzir a reforma política na direção correta?

TS: Se houver pressão popular sim, mas não se sabe como se maneja esses interesses. Não é essa coisa horizontal. Existem sistemas de controle tecnicamente já muito bem dominados.

EF: Até do referendum o governo precisou recuar...

TS: Há também a tentativa de identificar referendum com o fascismo. Se podemos falar em democracia em países como os Estados Unidos, há uma grande quantidade de referenduns e ninguém fala em fascismo. Não é verdade histórica, embora possa ter sido usado eventualmente por governos fascistas. O referendum é instrumento de participação popular. Todas as correntes de pensamento avançadas defendem o referendum nas questões mais relevantes. Mas é preciso polarizar, criar uma situação política. O referendum poderia ser um dos itens principais das manifestações e não está sendo. A própria questão da reforma política poderia ser objeto de referendum, mas isto nem está sendo discutido.

EF: O que mais faltou nas manifestações de rua?

TS: Ninguém colocou, por exemplo, a questão do poder financeiro no país, que consome mais de 30% do gasto público para pagar juros. Um país que tem superávit fiscal há muitos anos não pode ter uma dívida crescente, mas o superávit é insuficiente para pagar sequer os juros, aí se lançam mais títulos da dívida publica. Isto só é aceito porque o sistema financeiro manda no país e predomina a ideia de que precisamos manter superávit fiscal para sustentar gente que não faz nada. O sistema bancário brasileiro não financia o investimento produtivo. Apenas algumas formas de consumo.
Então para que serve esse sistema financeiro e porque o país tem que sacrificar
tantos recursos para o pagamentos de juros? É um paradoxo conter o consumo para controlar a inflação em um país no qual 70% da população consome muito
pouco. No entanto é declarado como objetivo da política econômica. É um contexto geral que está dominado por uma falsa consciência, orientada para um sistema claramente contrário aos interesses da grande maioria.

EF: Este não é um fenômeno mundial?

TS: Quando a classe dominante começa a perder poder econômico, também perde poder ideológico. São nessas oportunidades que se fazem as transformações. Há um setor da classe dominante mundial que compreende que
esse grau de dominação que ela está exercendo sobre o resto do mundo tem
um limite. E está pensando inclusive em reformular o capitalismo na direção de
um “neoprogressismo” semelhante ao que abriu caminho para reformas bastantes positivas no final do Século XIX e início do Século XX. No entanto, houve uma reação muito grande e tivemos que passar por duas grandes guerras para que houvesse o grande avanço verificado após a Segunda Guerra.

EF: A atual conjuntura vai nessa direção?

TS: O episódio da Síria mostra que o sistema vigente está perdendo poder.
São situações que podem criar um ímpeto transformador em nível mundial, mas também uma guinada para a direita. O ato de que os maiores países chamados
emergentes, reunidos no Brics, estejam ampliando sua participação na economia mundial, em grande parte reforçados pelo protagonismo chinês, aparece como uma forma de sistematizar esses interesses que estão emergindo de forma critica em relação à estrutura da economia mundial. A última reunião dos Brics cobrou a não realização da reforma do FMI, decidida no âmbito do G20. Poderíamos ter avançado mais, pois vejo que se o sistema não responder a esses anseios teremos uma situação muito perigosa, sobretudo por causa do poder de destruição que eles possuem: o controle das armas.

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