quinta-feira, 24 de maio de 2012

Mais uma contribuição para o debate sobre fascismo e democracia na América Latina


O Texto abaixo é mais contributo ao debate que será realizado no Colóquio sobre as transições democráticas. Chamo a atenção para o fato que na época em que foi publicado assinava não Theotonio dos Santos, mas Theotonio Júnior. O artigo saiu primeiro na Revista Civilização Brasileira, nº 3, 1965, e está corrigido para a ortografia atual.

A IDEOLOGIA FASCISTA NO BRASIL

THEOTÔNIO JÚNIOR

Quando este artigo foi escrito, o quadro político nacional apresentava-se conturbado por fatos os mais diversos, que revelam uma unidade política. Na Marinha, um almirante que pertenceu ao Conselho Revolucionário rebela-se contra o governo e faz declarações políticas que o levam à prisão. Um coronel que dirige um IPM faz as mais diversas provocações contra os candidatos da oposição e declarações contra as concessões do governo, que o levam também à prisão. Um governador de Estado rebela-se contra as eleições estaduais e as ingerências do governo na sucessão de seu Estado, mobiliza a polícia estadual, dá entrevistas e fala de revolução traída.

Um outro governador escreve cartas diárias ao Presidente da República, exigindo uma política mais dura. Por fim, uma organização de nome LIDER, que vem conturbando a vida brasileira há algum tempo, publica um manifesto ameaçando o país de uma guerra civil. Por tudo isto, consideramos oportuna a divulgação deste trabalho.



IDEOLOGIA E SOCIEDADE


Uma ideologia surge como resposta às condições sociais concretas que a determinam. É na realidade mesma e na sua dinâmica que devemos procurar as condições gerais que a determinam e as suas coordenadas fundamentais. Assim, podemos traçar, mesmo antes que essa ideologia se amadureça formalmente, as duas bases. Este é o caso dá ideologia fascista no Brasil. Esta não ganhou ainda uma forma sistematizada e coordenada, e talvez nunca chegue a tal, pois é característica do fascismo esta indefinição, que decorre do próprio caráter oportunista e irracional do mesmo. Este é o motivo pelo qual não basearemos nossa análise em documentos, senão ocasionalmente, pois o que queremos estabelecer são as condições gerais de uma ideologia fascista no Brasil, isto é, as características que ela teria se pudesse se cristalizar num pensamento único e coerente. Muitos dirão; e qual é o objetivo de tal análise? Não estaremos fazendo para eles o que deveríamos fazer para nós? Não estaremos dando armas ao adversário? A resposta é simples: o pensamento das classes revolucionárias é necessàriamente, mais abrangente do que, o das classes em decadência. Portanto, o pensamento que corresponda à perspectiva e aos interesses dos trabalhadores brasileiros será capaz, não só de integrar numa visão coordenada e sistemática os seus próprios interesses, como os de toda a sociedade e mesmo os das classes decadentes. Esta é uma arma com que conta a ideologia do futuro. Ela pode orientar não só a si mesma, como é capaz de compreender mais claramente os objetivos e as limitações do adversário e, portanto, de vencê-Io, Neste caso, a ideologia se confunde com a ciência.
Por isto as classes decadentes temem tanto a cultura e a reprimem, enquanto as classes ascendentes não só a desenvolvem como têm sede dela.


CONDIÇÕES SOCIAIS DO FASCISMO


O fascismo surge como resposta a duas necessidades sociais da moderna sociedade capitalista: combater a ameaça de uma revolução e realizar uma integração nacional capaz de expandir externamente um capitalismo limitado pelas amarras do domínio externo e pela estreiteza do seu mercado exterior. Daí a natureza aparentemente ambígua do mesmo, pois, ao mesmo tempo que representa uma contra-revolução, aparece como um desenvolvimento das forças produtivas. O que é preciso compreender, contudo, é que este desenvolvimento das forças produtivas representa uma saída provisória de uma formação. Social em decadência. Neste sentido, esta saída é antes um atraso do que um avanço e se apóia no expansionismo colonial e no militarismo, na ideologia do direito do mais forte e da destruição das minorias. Ela só pode levar a nação ao fracasso e à derrota, pois não passa de uma tentativa de enganar a história. Temos também o caso dos regimes fascistas que visam garantir a dominação colonial ameaçada, como a Espanha e Portugal. Seu papel histórico é, pois, o de fazer sobreviver um regime já superado através da intensificação da exploração econômica baseada na força.

Se é fato que este regime corresponde a uma necessidade de sobrevivência do capitalismo monopolista, as forças sociais com que conta são de outra origem. O fascismo precisa se impor primeiro como movimento pequeno-burguês para ser aceito e apoiado pelo grande monopólio. O fascismo surge, porém nas camadas sociais em decadência e marginalizadas socialmente, por isto, ele age primeiro de fora do sistema capitalista para ser absorvido por ele posteriormente. Seu caráter pequeno burguês dá-lhe grande flexibilidade programática, que se apóia essencialmente no nacionalismo, no anticomunismo e na defesa da força.

Mas, para que o fascismo consiga ganhar um apoio maior, é preciso que ele possa atingir camadas mais amplas da pequena burguesia e da classe média. Para isto, é necessário que se atravesse um período relativamente longo de crises econômicas e sociais, que ameacem a sobrevivência de vastos setores desta classe. São geralmente os momentos de crise aguda, que provocam a proletarização da pequena burguesia em favor do grande capital e que ameaçam os salários da classe média, os momentos propícios para que o movimento fascista ganhe o apoio desses setores. Só então obtém o suficiente "status" para se colocar como opção política séria.

Uma outra questão é o fascismo no poder, que não nos cabe tratar aqui. O que podemos ressaltar é que, no poder, o fascismo passa a realizar uma política nitidamente monopolista, militarista, policial e expansionista, o que entra em conflito com as suas bases iniciais. Por isso, não nos interessa aqui analisar o estado fascista, mas as condições sociais que originam o movimento fascista e que permitem que ele chegue ao poder.

Em resumo, podemos considerar o fascismo como um movimento contra-revolucionário, que visa, contudo, derrubar as amarras internacionais ao seu desenvolvimento. Suas bases sociais são constituídas por um setor marginal e decadente da sociedade, que inicia o movimento, para encontrar, logo depois, o apoio da pequena burguesia e da classe média desesperadas diante de uma crise aguda e que lhe dão uma dinâmica insurrecional capaz de levá-lo ao poder. Mas, para que chegue ao poder e aí se mantenha, o fascismo necessita do apoio do grande monopólio, o qual só se dá após a constatação de sua força e diante de uma ameaça concreta do movimento revolucionário. Geralmente, o fascismo só pode chegar ao poder após um longo processo de guerra civil e o fracasso evidente de um governo reformista, como foi o caso da social-democracia na Alemanha ou dos republicanos na Espanha.


CONDIÇÕES SOCIAIS DO FASCISMO NO BRASIL


Existem no Brasil as condições para a instalação de um regime fascista? No nosso país já se desenvolveu um capital monopolista bastante avançado, que se encontra porém limitado externamente pelo domínio capitalista do mercado mundial. De outro lado, a classe operária e o movimento popular em geral já se desenvolveram o suficiente para se converterem numa ameaça concreta à manutenção do regime capitalista. Ao mesmo tempo, existem vastos setores sociais marginalizados na nossa sociedade. Seja um latifúndio em decadência, seja um exército que não tem perante si nenhuma ameaça externa concreta e que tende a perder sua função social básica, seja uma classe média e pequena burguesia ligadas à antiga sociedade colonial em decadência.

Afora estes setores, temos uma classe média e pequena burguesia ameaçadas por uma crise econômica, que está ainda no seu começo e cujas conseqüências já se anunciam bastante graves. Temos, por fim, um lúpem proletariado nas cidades e no campo, que não é absorvido pela nova estrutura capitalista, não só devido ao seu desenvolvimento insuficiente, em decorrência das suas limitações de mercado, como ao caráter monopolista e tecnologicamente avançado do desenvolvimento capitalista moderno, que não absorve em nível suficiente a mão-de-obra que sobra das antigas estruturas em decadência, assim como do alto índice de crescimento demográfico. Por fim, do ponto de vista político, tivemos uma experiência de um governo reformista incapaz de realizar as reformas que pregava e que identificou a esquerda brasileira com os compromissos mais diversos com a ordem social burguesa liberal, sem oferecer, contudo, uma perspectiva de efetivas e profundas transformações sociais.

De tudo isto, podemos concluir que existem objetivamente as condições sociais para se desenvolver um movimento fascista no Brasil. Uma outra questão é a possibilidade ou não deste chegar ao poder. Podemos apontar algumas limitações poderosas para que triunfe um movimento fascista no país. Em primeiro lugar, o capital monopolista no Brasil sé, na sua maioria, ligado ou diretamente constituído pelo capital imperialista. Isto provoca uma situação paradoxal, que se resume no seguinte: o setor que teoricamente estaria mais interessado numa expansão colonial do país é constituído pelas próprias forças que impedem e limitam esta expansão. Em segundo lugar, a crise econômica que afeta a pequena e média burguesia chegou à sua fase aguda depois da queda do governo reformista, identificando-se, portanto, com um governo de direita, aliado do fascismo. Isto dá à propaganda fascista contra a crise um caráter falso e inconsistente e limita o apoio da pequena burguesia e da classe média ao mesmo. Em terceiro lugar, o setor social mais expressivo com que conta o fascismo é o latifúndio, cuja tradição reacionária entra em choque com a formação política da pequena burguesia brasileira e cujo caráter decadente e arcaico é um limite, claramente compreendido pela maioria do povo, ao desenvolvimento do país. O resultado é que o fascismo vê-se entre uma propaganda radical, que lhe permitisse ganhar a pequena burguesia, e o medo de, com a mesma, perder sua base latifundiária. Esta contradição também ocorre no primeiro caso: o fascismo vê-se paralisado entre a necessidade de uma campanha de caráter nacionalista, para ganhar o apoio da pequena burguesia, e a necessidade do apoio imperialista, que constitui o grosso do capital monopolista no país.

De tudo isto podemos concluir então que, se o fascismo constitui uma ameaça presente e em desenvolvimento,suas limitações são muito grandes, pois nunca conseguirá criar um movimento suficientemente amplo para galvanizar a nação e submetê-Ia à sua propaganda, e, se chegar ao poder, não será capaz de realizar uma política capaz de manter um grande apoio popular, pois não conseguirá senão realizar um governo defensivo e repressivo, sem contudo oferecer uma perspectiva de expansão, limitando-se a garantir para os grandes monopólios a intensificação da exploração do mercado já existente. A não ser que entrasse em choque com as forças sociais que o sustentam, como o latifúndio e o imperialismo, obrigando-se assim a deflagrar um processo em que não teria mais seu papel contra-revolucionário, sendo necessàriamente substituído por um regime superior. Existem, portanto, amplas possibilidades para o povo brasileiro conjurar esta ameaça, mas tal só será possível através de um programa capaz de refletir o verdadeiro caráter da revolução brasileira, tirando-a dos limites tímidos em que foi colocada, por ocasião do governo Goulart.


A "REVOLUÇÃO" TRAÍDA


Desde que analisamos as condições sociais do fascismo no Brasil, podemos passar à análise das coordenadas fundamentais de sua ideologia. É um fator específico, mas determinante do movimento fascista que ora cresce no país, que tenha surgido no bojo de um movimento contra-revolucionário ainda nas mãos de um setor das antigas cúpulas dirigentes. Isto não é um fator acidental, mas decorre das próprias limitações do fascismo no país, que analisamos anteriormente. O fascismo, em decorrência delas, transformou-se num apêndice da contra-revolução pró-imperialista e latifundiária, constituindo-se no seu setor mais radical. A característica fundamental do atual governo é que ele é um regime de compromisso entre essas forças e o setor liberal da burguesia, que se viu obrigada a aliar-se a elas pela Sua impossibilidade de dar prosseguimento às transformações progressistas, devido aos seus limites econômicos e políticos. Ameaçada por um movimento de massas, que passava a dirigir o movimento reformista e escapar de seu controle, paralisada por uma crise econômica, que exigia uma política econômica essencialmente antipopular, a estabilização monetária, este setor da burguesia viu-se empurrado para uma estreita aliança com o latifúndio e o imperialismo. A missão do fascismo no Brasil é submeter totalmente este setor, minar totalmente suas bases liberais, limitar sua influência dentro do Estado, de forma a permitir uma política de repressão total ao movimento popular.

O fascismo apresenta-se assim, em primeiro lugar, como um continuador dos objetivos contra-revolucionários do movimento de março-abril, que teriam sido traídos pelo regime de compromisso que estava no seu bojo e que se seguiu a ele através do ato institucional e do governo Castelo. Se havia um acordo tácito em afastar as massas do processo político brasileiro, este acordo não visava destruir totalmente as bases políticas das mesmas, pois elas constituem ainda o grande trunfo da burguesia para negociar dentro do estado brasileiro. Como vemos, de passagem, o movimento liberal sofre no Brasil, como o fascismo, profundas contradições internas, pois, apesar de que sua força seja exatamente o movimento de massas, ele se aliou ao governo de abril visando exatamente afastar estas massas da vida política do país.

Este objetivo inicial do fascismo constitui ao mesmo tempo a sua força e o seu limite. A sua força, porque, com isto, procura ganhar as massas pequeno-burguesas radicalizadas em abril, acenando-lhes com a continuação da obra não terminada, e jogando a culpa da impopularidade do atual governo na não ralização das medidas repressivas e na traição ao movimento. Sua fraqueza, porque continua vinculado inevitàvelmente ao regime atual e porque seu programa se apresenta com um caráter extremamente defensivo, apelando essencialmente para a repressão, sem oferecer qualquer conteúdo positivo.

De maneira ainda contraditória, alguns de seus dirigentes já vêm percebendo este problema. Pelo menos um de seus mais insistentes teóricos já o colocou em artigo para o Estado de São Paulo: "O fator de fraqueza da oposição (o fascismo, nota do autor) reside em ser ela ostensivamente liderada pelo Privilégio, que não tem mensagem alguma ao povo" (Oliveiros S. Ferreira - "Análise da Crise - 1", O Estado de São Paulo, 27-7-65). Não basta, pois, para a posição fascista colocar, como o fez Heck, que sua revolução é a de 31 de março e não a de 1º de abril, ou, como o fez Lacerda, que a revolução foi traída pelo atual governo, ou, como o coloca o Estado de São Paulo, que houve uma "contra-revolução" termidoriana dentro da revolução, em conseqüência do etos burocrático em que transitam os seus líderes. Tal colocação é ainda insuficiente para formar uma ideologia fascista no país, ela é o seu ponto de partida, mas não basta para constituí-Ia.


O ANTICOMUNISMO

O anticomunismo é a bandeira mais popular com que conta o fascismo. Aproveitando-se de toda uma educação anticomunista que a classe dominante inculcou no país, aproveitando-se da aliança do Partido Comunista Brasileiro com o movimento sindical pelego e com o janguismo, o movimento fascista tenta levantar esta bandeira contra o atual governo, que não teria reprimido suficientemente a "subversão", que o fascismo alia à "corrupção", visando estender a força de sua "mensagem". Tal propaganda encontra-se hoje muito desgastada, pois o atual governo se constituiu em aliança com notórias expressões da corrupção, como Ademar e Magalhães, tendo, ao mesmo tempo, se tornado claro para todo o país aquilo que já era do conhecimento de quem conhecesse a política de esquerda, isto é, que o Partido Comunista Brasileiro encontrava-se inteiramente desarmado e aspirava exclusivamente transformações pacíficas e reformistas. Isto não significa, contudo, que essa propaganda esteja definitivamente ultrapassada no país. Foram anos de' educação anticomunista e moralista da classe média e da pequena burguesia, cujos efeitos não desaparecerão rapidamente. Principalmente se levarmos em conta que a crise econômica provocará profundas agitações sociais que assustarão novamente a pequena burguesia e a classe média, principalmente se essas agitações não forem conduzidas para objetivos programáticos concretos, que apresentem uma saída efetiva para a crise brasileira.

Tem sido muito ridicularizada a histeria fascista, diante das manifestações populares, identificando em todas elas o dedo do comunismo e da subversão. Tal fato tem, porém, uma origem social, que o explica e dá a esta histeria uma base muito concreta. Na medida em que a revolução brasileira ainda se coloca tarefas democráticas, antiimperialistas e antilatifundiárias, mas, por outro lado, tais tarefas se tornam a cada dia mais evidentemente entregues à liderança do movimento popular, diante da capitulação da burguesia brasileira, o fascismo percebe, muito mais claramente do que certa esquerda, que o movimente democrático, antiimperialista e antilatifundiário é essencialmente revolucionário e ameaça o próprio regime capitalista. É, portanto, completamente utópico tentar combater o fascismo nos quadros de um movimento puramente liberal e, no fundo, têm eles muito mais sentido histórico do que muitos setores da esquerda brasileira. Enganam-se, pois, profundamente aqueles que vêm no anticomunismo difuso da ultra direita um histerismo puro e simplório, uma falta de sentido histórico e de sutileza. Ela representa uma expressão, confusa e irracional, é fato, de uma situação histórica concreta.


O NACIONALISMO

Tem causado confusão em muitos setores da esquerda a propaganda anti-americana feita pela Tribuna de Imprensa encampada claramente por Carlos Lacerda. No entanto, ela corresponde a uma necessidade de sobrevivência do mesmo. Como vimos o fascismo só ganha foros de um movimento forte quando ganha a pequena burguesia e a classe média. Esta é a verdadeira base de massa do fascismo. Nada há de estranho, portanto, que ela busque ganhar estes setores, cujo nacionalismo é constitutivo de suas condições provincianas e limitadas de vida e representa uma alternativa de afirmação nacional e de expansão econômica. O nacionalismo da pequena burguesia só é antiimperialista indiretamente, em decorrência da limitação que o imperialismo estrangeiro representa para esta expansão. Eis o que identifica o programa pequeno burguês com o programa monopolista e permite sua união no estado fascista. O nacionalismo é, portanto, um constitutivo essencial da ideologia fascista.

Já vimes a limitação que representa para o fascismo brasileiro a aliança necessária do mesmo com o imperialismo. Como é possível conciliar as duas coisas? Estará o imperialismo disposto a permitir que seus aliados cheguem ao poder através de uma propaganda tão perigosa? Estará disposto a uma jogada tão ambígua? O imperialismo norte-americano ainda não se convenceu da necessidade do fascismo no poder, mas já percebeu que é uma questão a estudar. Segundo notícia da “Última Hora”, de 28 de Junho de 1965, o Departamento de Estado já teria pedido os estatutos e documentos da LIDER. Como já dissemos, o capital monopolista no caso brasileiro, o imperialismo, só
se aprova no fascismo como última saída, diante da ameaça de uma revolução social. Eis por que o imperialismo terá de aceitar, a longo prazo, uma propaganda antiimperialista, se bem que esta deverá ser adaptada, de forma 'a não criar uma opinião pública consciente e antiimperialista. O que não permitirá, será a conversão deste programa em política governamental, o que, de resto, não seria possível no país, sob um regime fascista, como já foi colocado.

A ORGANIZAÇÃO DA VONTADE POPULAR

Se bem que o fascismo se desenvolva no quadro das democracias burguesas, sua forma de organização é muito mais desenvolvida do que a dos partidos liberais. Assim como a revolução proletária exige uma forma organizatória mais rígida do que a revolução burguesa, a sua antítese contra-revolucionária exige também uma forma organizatória bastante rígida. Eis por que o fascismo se apóia no partido único, rígido e centralizado, que é uma grotesca paródia do partido proletário. A rigidez desta organização se deve não só à necessidade de combater pelas armas um adversário bem organizado, como a de sustentar um governo forte e policial.

A consciência da necessidade de "organizar a vontade popular" se coloca para o fascismo brasileiro corno um caráter extremamente defensivo: corno meio de salvar a "revolução" da impopularidade que a ameaça e de se organizar para a repressão às manifestações esquerdistas. A diversidade das lideranças fascistas, a sua falta de unidade doutrinária e a incipiência de sua doutrina vêm impedindo há muito a sua organização partidária. Hoje, difundem-se pelo país uma imensidade de siglas, que representam o embrião desta organização: LIDER, COP, PAB, CAMDE, etc., formam um conjunto assistemático e inorgânico. Seus precedentes históricos, corno o Clube da Lanterna e o Movimento Popular Jânio Quadros, foram muito mal sucedidos, pois nunca ganharam uma forma partidária e doutrinária, em virtude mesmo das contradições internas da pequena burguesia brasileira. Por outro lado, o fato de que o movimento popular brasileiro não tenha conseguido assumir a forma partidária, perdendo-se em frentes e órgãos amplos, é um limite à organização fascista, que se alimenta exatamente do seu adversário. Assim como a esquerda se organizou em torno de alas dos partidos tradicionais, como a Frente Parlamentar Nacionalista, a direita se constituiu da mesma forma. A Frente Democrática, no período Jango, tem corno sucedâneo atual os lacerdistas dentro da UDN e o Bloco Parlamentar Revolucionário. A tentativa de Magalhães Pinto em formar um Partido da Revolução era, apesar de mais completa do que as formas atuais, ainda incipientes, pois a um tal partido faltaria o mínimo de unidade programática e centralização, que lhe permitisse funcionar corno um exército contra-revolucionário. No fundo, tal Partido da Revolução representaria uma cristalização da atual situação de compromisso e, por isto, nunca poderia assumir a forma sistemática de um partido fascista.

A sugestão mais completa a este respeito foi feita mais uma vez pelo insistente teórico da "oposição revolucionária" que escreve no Estado de São Paulo. Nos seus artigos, o autor sugere a formação de uma frente nacional de militares, operários e camponeses. A ela caberia a tarefa de organizar a vontade nacional comprometida pelo domínio tutelar dos militares sobre a revolução e a nação. Tal Legião Nacional se constituiria como base de um novo Estado, assumindo assim as características de um partido único. Esta concepção é uma expressão do estágio pouco desenvolvido da ideologia fascista e de uma solução de compromisso que não exprime corretamente a correlação das forças sociais que poderiam sustentar tal regime no país. No entanto, tem a vantagem sobre as outras de apontar um caminho para os fascistas. Deixemos para eles a tarefa de resolver os seus problemas organizatórios.


A VIOLÊNCIA E A GUERRA CIVIL

O fascismo se apóia na idéia da força como forjadora do direito. Tal concepção da história é completamente falsa. O direito se fundamenta em relações sociais concretas e a força só surge como seu complemento, sua garantia, fundada, porém, numa concepção do mundo. Quando Engels afirma, por exemplo, que a "violência é a parteira da história", fala de períodos históricos condicionados socialmente, nos quais a violência surge como maneira objetiva de realizar a destruição das velhas formas sociais e dar à luz as novas relações. Nenhuma sociedade pode se fundar no domínio puro e simples do mais forte. Quando o fascismo procura glorificar a força e a violência está, de fato, escondendo, através dela, uma dominação de classe em decomposição e que já não consegue mais se legitimar perante a sociedade no seu conjunto. Ao analisar os fundamentos da ideologia fascista, no seu contravertido "Assalto à Razão", Lukács mostra que ela se apóia no irracionalismo filosófico. Tal filosofia, fundada na idéia de uma intuição, que se opõe à razão, exprime a necessidade da burguesia monopolista de renegar o racionalismo para justificar o poder e a força como conceitos abstratos, independentes de uma legitimação social.

A doutrina da força se apóia de que a sociedade e a ordem tradicionais estão ameaçadas por um monstro, o comunismo, que é necessário conjurar de qualquer forma, adotando os mesmos métodos que esta sociedade em decadência pensa ser os dele, isto é, a violência pura e simples. Se o adversário é violento, a única arma contra ele é um regime apoiado na violência. Tal concepção limita enormemente o pensamento fascista, transformando-o numa doutrina sem consistência, empírica e irracional.

A filosofia da violência ainda não ganhou uma formulação clara no Brasil. Ela aparece, em geral, vinculada a lutas políticas e a discussões de ordem tática. Falta-lhe o vigor de um pensamento filosófico ou de uma formulação mais genérica. Falta-lhe ainda um desenvolvimento literário e retórico, pois entra em choque com a ideologia da docilidade e pacifismo do brasileiro. Apesar de que o povo brasileiro seja formado dentro de um complexo sado-mazoquista, herdado da sociedade patriarcal, tal realidade psicológica é sublimada por uma auto-imagem de bonachão e tranqüilo que é fàcilmente desmentida pelo noticiário criminal dos jornais, assim como pela sua enorme clientela. Uma doutrina da violência no Brasil, que consiga vencer esta resistência psicológica, através de disfarces religiosos ou de qualquer tipo, terá uma enorme audiência e poderá ganhar uma grande força.

A guerra civil é a realização concreta do ambiente do fascismo, sobretudo Se os adversários se mostrarem fracos e hesitantes neste campo. O recente manifesto da LIDER, que fala abertamente de uma guerra civil, se os "corruptos
e subversivos" voltarem ao poder legal ou insurrecionalmente, é uma demonstração patente de que a ameaça de uma guerra civil deixou de ser algo distante no Brasil de hoje. Quando analisamos as condições sociais do fascismo, procuramos mostrar que ele tem necessidade de uma guerra civil para chegar ao poder. Isto porque o fascismo exige uma unidade nacional que não pode suportar uma oposição de qualquer tipo e, por outro lado, é uma decorrência natural do seu caráter contra-revolucionário exacerbado. Nenhum regime fascista pode se impor sem a derrota física da vanguarda revolucionária e dos setores mais ativos do proletariado e da intelectualidade. Para realizar esta tarefa, o fascismo dispõe de um recurso muito mais eficiente do que milhares de soldados armados. Através da organização de milícias e tropas de choque, o fascismo pode disseminar a repressão, criar um clima de terror e delação que supera todos Os organismos policiais. No Brasil de hoje, tais bases armadas do fascismo encontram-se em germe, através da conjugação de setores da cúpula das forças armadas, da juventude militar e dos latifundiários armados até os dentes, sem contar setores da juventude urbana, de desempregados e marginais que poderiam ser armados ràpidamente, como, aliás, o foi demonstrado em abril de 1964. Tal afirmação não é minha. Foi feita pelo insistente teórico da "oposição revolucionária" em artigo para o Estado de São Paulo já citado.

Por outro lado, já assistimos tentativas de dissolução de concentrações e de peças de teatro, além de movimentos de cassa a livros e escritores. Tais ações mostram claramente que estão em germe tropas de choque urbanas no mais estrito figurino hitlerista. E, segundo foi denunciado nos jornais da época, tais ações contavam com a cobertura da polícia política do Estado da Guanabara, o que também é típico das ações fascistas.


O CHEFE NACIONAL

Para coroar a visão do mundo fascista, falta a figura de um chefe nacional, capaz de se apresentar como a expressão corporal da vontade nacional. Tal chefe nacional é uma necessidade do fascismo, na medida em que consubstancia a justificação irracionalista da força, ao exprimir a idéia de soberania num indivíduo, como os regimes absolutistas, que precederam a queda das monarquias. Tal chefe nacional deve transmitir uma idéia messiânica, uma impressão de força e virilidade, nas quais se projete o pequeno burguês e o homem de classe média, frustrados e humilhados diàriamente nas suas relações sociais. Assim como os super-homens, difundidos pelo cinema, pela televisão e pelas revistas em quadrinho, permitem ao pequeno burguês purgar-se de suas frustrações, através da identificação psicológica com estes personagens, esquecendo assim as suas aspirações de elevação social não realizadas, as suas invejas dos poucos colegas que "subiram na vida" e libertando-se dos seus recalques, acumulados numa existência marginal e medíocre, submissa e sem sentido através das façanhas dos seus heróis.

Como toda força política em emergência, o fascismo brasileiro ainda não tem uma figura capaz de unificá-lo no seu conjunto. O nome de maior destaque nas suas fileiras é o de Carlos Lacerda, cuja biografia o aproxima enormemente de tal liderança. Mas, os compromissos com a política dominante, que este já assumiu no decorrer de uma longa carreira política, tornam-no excessivamente conciliador para obter tal liderança fàcilmente. Para isto, teria de dar passos mais concretos, no sentido de criar uma organização própria e de se colocar na condição de chefe incontestável dessas forças. Figuras como Jânio Quadros, que têm um poder messiânico e carismático bem mais forte que Lacerda, encontram-se também comprometidas com um estilo de liderança política tradicional. Possivelmente, o fascismo brasileiro deverá forjar os seus próprios líderes no processo de seu crescimento.

Mas, como em todos os outros aspectos de sua ideologia, a formação de um chefe nacional encontra-se bastante limitada pelas próprias contradições internas que já ressaltamos no fascismo brasileiro e que se refletem sobre seus
líderes. Podemos explicar a conduta de Lacerda, não só por seus compromissos políticos e pelo estilo de militância política a que se acostumou, mas também pela dificuldade de resolver as contradições internas que ressaltamos. É difícil para ele conciliar seus compromissos com o imperialismo norte-americano com a figura' de um líder nacionalista, também é-lhe difícil atirar fora a proteção do governo federal, para poder se apresentar como oposição radical ao mesmo, sobretudo enquanto faltar a base de massa ao movimento fascista e uma mínima cristalização ideológica e programática do mesmo. Eis por que a imagem pública de Lacerda cada vez mais se aproxima de um conciliador, que alterna repentes violentos com conciliações espetaculares.


CONCLUSÕES

Da análise que fizemos, fica patente que a ideologia fascista ainda está se desenvolvendo e ainda está em germe no Brasil. As possibilidades do seu desenvolvimento ideológico e prático dependerão, sobretudo, da capacidade do povo brasileiro de lutar contra esta ameaça. Tal capacidade decorre, não somente da clara visão das necessidades ideológicas e políticas dos seus adversários, mas sobretudo da capacidade de compreender as suas próprias tarefas históricas. Pelo que vimos, ainda há tempo para conjurar esta ameaça. Mas o tempo é pouco. Cabe a nós agir rapidamente neste sentido. Mas é preciso sobretudo analisar as experiências passadas para não cometer os mesmos erros, não realizar as mesmas alianças que enfraqueceram o movimento popular, saber enfim encontrar os seus verdadeiros objetivos históricos e a maneira correta de realizá-los , A luta contra o fascismo não pode ser somente defensiva, tem de ser sobretudo ofensiva, tem de oferecer uma opção suficientemente radical para justificar a dureza desta luta. Nos momentos que se avizinham, haverá muito pouco lugar para a timidez, a hesitação e a covardia política. Aqueles que incidirem neste erro, pagarão muito caro por isto. Assim a história o quer.

Busca