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segunda-feira, 4 de junho de 2012

"O tempo do extremo", Míriam Leitão (O Globo - domingo, 3 de junho de 2012‏)


Temos que tirar o chapéu para a senhora entrevistadora, em geral  tão profundamente equivocada. Heraldo  Muñoz nos entrega um livro muito importante para compreender o processo chileno, o golpe de Estado, o governo militar e a abertura que levou à cooperação socialista-social cristã. No momento atual, abre-se uma nota etapa como o expliquei  em outra matéria deste blog.

COLUNA NO GLOBO de Míriam Leitão - 03.06.2012

O tempo do extremo

O embaixador começou a responder e parou. Ficou em silêncio, domando a emoção. Quase desistiu da resposta: “Eu acho que vou...”, disse. No trabalho, o subsecretário-geral da ONU, Heraldo Muñoz, não é conhecido como homem emotivo nem explosivo. É controlado, objetivo. No dia do golpe no Chile, em 1973, ele saiu às ruas com bananas de dinamite. Os 32 segundos de silêncio, na entrevista que fiz com Muñoz na Globonews, foram reveladores.

Alguns jovens da geração dos anos 1960 e 1970 pensaram no impensável e fizeram o que em outras circunstâncias não fariam. Ele começa seu livro “A Sombra do Ditador” com uma frase espantosa: “Na manhã em que o golpe começou quase me tornei o primeiro terrorista suicida do mundo.” Era sobre isso que eu tinha perguntado.

Muñoz, além de subsecretário-geral da ONU, é diretor do Pnud para a América Latina e Caribe. Na época do golpe, era um militante do Partido Socialista. Anos depois, em 1990, estava no governo Patricio Aylwin quando foi instalada a Comissão da Verdade que apurou os crimes da ditadura chilena. Foi embaixador no Brasil e nas Nações Unidas. Na ONU, trabalhou por uma resolução que recomendou em 2009 a instalação de comissões da verdade em países que saíram de períodos ditatoriais:

— Elas sempre tiveram o efeito positivo de buscar as informações. É preciso saber quem matou, quem sequestrou, onde está o corpo, para fechar as feridas. Não pode haver reconciliação sem saber o que aconteceu. Tem gente que diz: vamos virar a página, porque tudo isso é muito polêmico. Mas é preciso saber, ter arquivos.

Ele contou que as comissões da verdade em vários países, como Chile, Argentina, Guatemala, El Salvador, Peru, África do Sul, Colômbia, tiveram formatos diferentes. Na América Central, algumas foram conduzidas pela ONU. Na África do Sul, foi precedida de um período em que se a pessoa prestasse informações receberia uma anistia. Isso levantou dados importantes. No Chile, acha que isso não seria possível porque no período em que o trabalho começou, Pinochet ainda era o comandante do Exército. Na Argentina, os militares concederam uma anistia a eles mesmos. Depois do trabalho da Comissão, houve processos judiciais. No Chile, nasceu a interpretação de que crimes de desaparecimento não podem prescrever até que apareça o corpo ou a pessoa sequestrada.

Muñoz explicou que há elementos comuns entre as comissões: a busca dos fatos, a ajuda à Justiça, montar arquivos. As comissões sempre ocorreram em época mais próxima dos eventos. No Brasil, só agora foi instalada.

— Os processos de transição têm seus tempos e os tempos são ditados pela realidade local — disse ele.

No Chile, os integrantes da comissão eram de lados diferentes do campo político e havia até um ex-ministro da Educação de Pinochet. Durante dois anos, trabalharam com a ajuda de uma equipe de advogados e especialistas. No final, foi divulgado o “Relatório Rettig”, que informa que 2.115 pessoas foram assassinadas no Chile. Pode ter sido mais de 3.000. O Exército não aceitou o relatório, mas as outras Forças, sim. Pinochet disse que era uma versão unilateral.

No livro, Muñoz relata os dois enterros de Salvador Allende. O primeiro, apressado, quase às escondidas. Sob ameaça de armas, Hortensia Allende, a viúva, corajosamente diz: “Que saibam todos que aqui jaz o presidente constitucional do Chile.” No segundo, na democracia, ele recebeu honras de chefe de Estado. “Muitos outros estavam fadados a morrer entre os dois sepultamentos de Salvador Allende”, diz ele, no livro lançado no Brasil pela Zahar. Nos primeiros meses morreram em média 119 pessoas por semana.

Apresentei a ele as dúvidas levantadas no Brasil nos últimos meses: de que a verdade é relativa, de que não vale a pena reviver conflitos passados, e de que a oposição também cometeu crimes:

— Esses argumentos não me surpreendem; apareceram em todos os países, principalmente levantados por quem se sente vulnerável pelas revelações. Sobre os crimes cometidos pela resistência à ditadura, vamos lembrar que todas as pessoas foram julgadas, condenadas a penas bem além da responsabilidade que tiveram e foram torturadas.

Perguntei ao embaixador Muñoz como explicar para os mais jovens por que pessoas como ele tinham tomado decisões tão extremadas? As bananas de dinamite que ele carregou no 11 de setembro pelas ruas de Santiago estavam instáveis. Poderiam ter explodido. Ele começou: “Foram sonhos de mudança e de justiça.” E então ficou em silêncio por 32 segundos. Depois, concluiu:

— Não faria isso novamente. Naquele momento defendia um governo de mudanças, eleito democraticamente. Hoje, as novas gerações tomam a democracia como um dado inquestionável. Para a nossa geração foi mais difícil. No ano passado, houve seis eleições na América Latina sem nenhum incidente. É o período mais longo de democracia, mas o custo foi grande. Aprendemos com os nossos erros, mas o outro lado talvez tenha aprendido que — apesar das diferenças do passado — temos um futuro comum.

Na saída da entrevista, ele me disse que integrantes da repressão brasileira foram ao Chile ensinar técnicas de tortura aos militares chilenos. E que isso deveria ser objeto de investigação da Comissão da Verdade.