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segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

ESTIVE RELENDO ESTA ENTREVISTA E GOSTEI DELA. POR ISSO EU A PUBLICO PARA VOCÊS. ALÉM DISSO OS COLOCA EM CONTATO COM BAFAFÁ, UMA SIMPÁTICA INICIATIVA DE JOVENS DE IPANEMA.






Theotonio dos Santos
“O capitalismo contemporâneo é o capitalismo de Estado”

Exilado no Chile e no México durante a Ditadura, Theotonio dos Santos é mestre em Ciência Política pela UNB e Doutor em Economia pela UFMG. Como um dos formuladores da Teoria da Dependência e um dos principais expoentes da Teoria do Sistema Mundo, é um dos intelectuais brasileiros mais respeitado no exterior. Sua Teoria da Dependência consiste em uma leitura crítica e marxista não-dogmática dos processos de reprodução do subdesenvolvimento na periferia do capitalismo mundial, em contraposição as posições marxistas convencionais dos partidos comunistas.

Autor de 38 livros, co-autor ou colaborador de outros 78, Theotonio dos Santos fala com exclusividade ao Bafafá. Entre os temas, o início da vida acadêmica, a descoberta do Marxismo, suas formulações teóricas, Consenso de Washington e a recente crise mundial. Sobre o sucesso do governo Lula na área econômica é enfático: “O principal fator foi o abandono das teses neoliberais no BNDES e na política exterior. O Brasil exporta hoje três vezes mais do que exportava quando Fernando Henrique entregou a Lula um país arrastando-se pelo solo", afirma.

Como foi a sua juventude?
Uma mistura de boemia, política estudantil, pouco esporte, muita discussão e muito estudo por minha conta, um pouco de trabalho... Muito namoro, bailes. Puxa que agitação... Será que eu fiz tudo isto?

Sempre gostou de estudar?
Sempre gostei de estudar o que me interessava. Sempre tive planos de estudos longos. Me lembro quando mostrei a Betinho meu plano de estudo de filosofia que tomava uns 30 anos e ele me disse: “Eu já estarei morto antes de você terminar este plano”. Mas Betinho viveu muito mais, contra todas as expectativas...

Confere que devorava livros?
Devorar é uma palavra forte. Sempre li com muito cuidado. Tomando notas, marcando os livros – até os de literatura, poesia, pois tinha pretensões literárias, como vocês deveriam saber...

Quando descobriu Marx?
Marx foi uma descoberta tardia. Aos 18 anos. Depois de ter “devorado” os interpretes do Brasil, os filósofos existencialistas, os historiadores clássicos, e a literatura brasileira e universal. Foi uma leitura impactante. Definitiva. Estudei ordenadamente as obras filosóficas. Depois o pensamento econômico e o político.

O que é a Teoria da Dependência?
A teoria da dependência foi (e é ainda) uma tentativa de compreender o nosso atraso do ponto de vista da expansão do sistema capitalista mundial. Neste sistema, o centro imperialista, e a periferia (dependente e subdesenvolvida) fazem parte de uma unidade histórica. Não é possível compreender um sem o outro. A escravidão, a economia mineira, a economia latifundiária exportadora, do nosso lado, são a base da acumulação primitiva capitalista (o tráfico de escravos que enriqueceu a Inglaterra, e a riqueza dos metais preciosos que transformou a Europa numa potencia mundial, o acesso a agricultura tropical que viabilizou a alimentação européia, as matérias primas para a revolução industrial, etc, etc.)


E a Teoria do Sistema Mundo?
A teoria do sistema mundo reestuda a formação do capitalismo contemporâneo desde este ponto de vista global. Hoje ela revisa inclusive toda a história universal superando o euro-centrismo – isto é, a criação de uma falsa historia universal vista do ponto de vista da região mais atrasada do mundo até o século XV – isto é, a Europa central e do norte.

Que experiência política chegou mais perto do conceito marxista no mundo?
Claro que a Revolução Russa abalou profundamente a teoria marxista ao introduzir um processo de transição ao socialismo na parte mais atrasada da Europa. Marx havia concentrado sua visão do socialismo como um processo pós-capitalista, mas a experiência dos países capitalistas centrais permitiu uma recuperação permanente do capital ao explorar a economia mundial sob o imperialismo. Em muitos aspectos, na Inglaterra e nos Estados Unidos, ou mesmo no Japão, o movimento operário e as forças políticas de esquerda introduziram relações sociais, desenvolvimento cultural, processos democráticos muito mais próximos do socialismo que as regiões mais atrasadas que optaram mais explicitamente por uma transição planejada ao socialismo. Nelas, o peso da contra revolução mundial (a invasão da União Soviética por 24 países apoiando o exército branco na Guerra Civil Russa, a invasão nazista da URSS com 20 bilhões de mortos, a imposição da Guerra Fria à URSS, o cerco econômico de Cuba e a invasão da Baia dos Porcos, alem das guerrilhas contra revolucionárias operando em Cuba durante mais de 10 anos, a guerra contra a Coréia, a guerra da Indochina e a guerra do Vietnam, as guerras de baixa intensidade contra a Nicarágua, as invasões na America Latina, os golpes de Estado comandados pelos EUA na região, etc., etc., etc. ...) não permitiu o pleno florescimento do socialismo e transformou o processo de transição socialista em tarefas as vezes extremamente autoritárias. Mas a historia é assim mesmo. As dores do parto socialista são bem menores que as seculares violências que impuseram o capitalismo.

O socialismo sucumbiu ao mercado?
O socialismo, segundo Marx, é um “mero progresso”. Trata-se de um esforço histórico secular para impor a vontade revolucionária da humanidade sobre as “leis do mercado”. Mas isto não quer dizer que as relações mercantis possam ser totalmente anuladas. O próprio desenvolvimento do capitalismo se implanta através da conversão do monopólio na forma fundamental do mercado contemporâneo. Já no final do século XIX se implantou o imperialismo baseado nas relações monopólicas mundiais. O mercado tal como o descrevem os economistas neoliberais não existe mais e nunca existiu efetivamente. O capitalismo não “sucumbiu” a este falso livre mercado. Porque o socialismo sucumbiria? O capitalismo contemporâneo é o capitalismo de Estado. Ele é comandado pelo “capitalista coletivo” como Engels definiu o capitalismo de Estado que já emergia fortemente no final do século XIX. Naquela época o gasto estatal correspondia a menos de 10% do PIB dos países capitalistas. Hoje o gasto estatal corresponde de 40% a 65% do PIB dos principais estados capitalistas!

O embate esquerda X direita acabou?
A esquerda é a vanguarda das sociedades modernas. Nem sempre os comunistas cumpriram esta função que Marx lhes atribuiu no Manifesto Comunista. Durante o século XIX comunistas e democratas lutavam contra as monarquias feudais e os capitalistas liberais que se negavam, como fazem até hoje, a reconhecer o sufrágio universal, isto é, a democracia como o principio ordenador da sociedade contemporânea. A luta democrática esteve assim no centro das lutas do século XIX até que as crescentes vitórias dos democratas e a formação dos partidos socialistas foi estendendo a luta a novos setores: a luta pelas 10 horas de trabalho que, como disse Marx, impunha a economia política da classe trabalhadora sobre a economia política burguesa. No inicio do século XX, a conformação do imperialismo contemporâneo estendeu a luta democrática ao plano mundial. A Revolução Russa, junto com a Revolução Mexicana, e varias lutas antiimperialistas abriram uma nova fase da esquerda: a vanguarda passou a ser, sobretudo antiimperialista, muitos setores da esquerda ficaram para trás e conduziram os trabalhadores a participar nas guerras inter-imperialistas a favor do domínio colonial. No pós II Guerra Mundial a luta pela paz, a libertação das colônias se aliou à luta democrática e às conquistas sociais impostas pelos trabalhadores para conformar a nova vanguarda.
As capitulações ocorridas nos anos 80 e 90 por parte dos movimentos de esquerda em grande parte do planeta pretenderam conter o imperialismo ao desarmar suas desculpas para a Guerra Fria e conter a sua confrontação com o Estado de Bem Estar. Estas postulações neoliberais não visavam diminuir o papel do Estado em geral, como se supõe. Pelo contrário, os neoliberais elevaram de maneira espetacular a divida publica e a intervenção estatal, transferindo recursos colossais da população para o sistema financeiro mundial. Desde 1987, entrou em crise esta política que se conserva através de crescentes desequilíbrios na economia mundial. Se quiser informar-se sobre isto, leia meu livro: Do Terror à Esperança: auge e declínio do neoliberalismo, Editora Idéias&Letras, Aparecida, 2004.
Com a crise atual, os “especialistas” descobrem o amor dos capitalistas pela intervenção estatal  quando ela se exerce a seu favor. É muito atraso descobrir isto mais de 100 anos depois dos principais pensadores marxistas...

O Consenso de Washington foi uma balela?
O Consenso de Washington foi uma proposta das grandes potencias para submeter as economias dependentes aos seus interesses. A enorme literatura a seu favor, a partir, sobretudo do FMI e do Banco Mundial, é pura ideologia disfarçada de ciência e “seriedade técnica” que Stiglitz vem desmontando nas suas criticas ao Banco cujas riquezas ele dirigiu.

A crise mundial recente desmoralizou o neoliberalismo?
A desmoralização do neoliberalismo já havia começado antes com o fim do Consenso de Washington no principio do século XXI. Aqui no Brasil o neoliberalismo ainda tem prestigio no Banco Central que impede o Brasil de crescer e se desenvolver.

Como será regido o mercado mundial de agora em diante?
A luta pela liderança do mercado mundial deverá desdobrar-se durante uns 20 anos ainda. A presença da China, dos BRIC, das novas potencias continentais, as divergências no bloco atlantista entre EUA e Europa, a asiatização do Japão que tem hoje como principal mercado a China, tudo isto aponta para uma nova geopolítica mundial. Proponho que leiam a serie de quatro volumes que organizei sobre Hegemonia e Contra-hegemonia, publicada pela PUC-Rio e a Editora Loyola. Também indico o volume que a UNESCO publicou sobre Alternativa à Modernização e as Novas Potencias Emergentes, sob minha direção.

Como você explica o sucesso do governo Lula na área econômica?
O principal fator foi o abandono das teses neoliberais no BNDES e na política exterior. O Brasil exporta hoje três vezes mais do que exportava em 2007 quando Fernando Henrique entregou a Lula um país arrastando-se pelo solo, sem um centavo para pagar as dividas vencidas, com déficit comercial, inflação de dois dígitos, divida insustentável e sem nenhuma perspectiva. O que salvou o país foi a enorme massa de recursos que veio do comercio exterior. Saímos da orbita norte-americana e aumentamos o comercio com as zonas mais dinâmicas do mundo. A China se converteu no maior destino das exportações brasileiras...
Tudo isto apesar de que nossa política macroeconômica, comandada pelo Banco Central continua retirando 1/3 do nosso orçamento para pagar juros absurdos aos especuladores financeiros que não dão nada ao país.

Tem alguma utopia?
Darcy Ribeiro, meu querido amigo e companheiro, falava de sua pequena utopia: “Eu só quero que o nosso povo possa comer todos os dias, estudar os cursos básicos e estejam trabalhando com emprego assegurado”, dizia ele. Só isso já bastaria. Minha pequena utopia está escrita no aeroporto de Havana: “Há milhões de crianças que dormem hoje nas ruas do mundo. Nenhuma delas é cubana.”
O que eu só quero é acrescentar: E nem brasileira?

Entrevista concedida a Ricardo Rabelo, editor do Bafafá.


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