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sexta-feira, 6 de agosto de 2010

MEU AMIGO ERNEST MANDEL

Meu primeiro contato com a obra de Mandel deu-se no princípio dos anos 60 quando Eder Simão me mostrou o livro ada em francês de “um marxista belga”. Era um ambicioso tratado de economia marxista que nos alimentou sobre teoria marxista, ao lado da obra de Paul Sweezy e Baran, além, evidentemente da leitura coletiva do Capital e minhas aventura pelo estudo das obras filosóficas e econômicas de Marx e Engels, de Hegel, do filósofo desconhecido no Brasil, Eduardo Nicol, que Guerreiro Ramos me recomendou enfaticamente. Da França chegavam os questionamentos de Henri Lefebvre que influenciavam o esforço teórico e analítico impressionante de Sergio Frondizi, do grupo práxis argentino. Na América Latina nos impressionava os artigos de Mariátegui e tantos outros marxistas desconhecidos no Brasil que só viemos a conhecer de maneira madura no nosso exílio chileno. Desta maneira, Ernest Mandel não era para nós um teórico “trotskista”. Ele fazia parte de uma revivência histórica do marxismo que partia dos clássicos passando pelo Capital mas também pelos Grundisse. O esforço de Althusser na França se deu nesta mesma época e vai ter uma influencia e ressonância muito maior pela caixa de ressonância de Paris, particularmente no ano revolucionário de 1968.

Em 1969 me encontrei pela primeira vez com Mandel numa conferencia histórica sobre a crise dos anos 70 que se realizou em Tilburg na Holanda. André Gunder Frank me solicitou que lhe levara seu último texto sobre a acumulação mundial que preparou no Centro de Estúdios sócio econômicas da Universidade do Chile cujas pesquisas eu dirigia naquele momento. Eu lhe entregue também o trabalho que apresentei no encontro de Tilburg sobre os ciclos longos de Kondratiev nas economias dependentes. Mandel reagiu com emoção ao descobrir que em diferentes partes do mundo avançávamos na mesma direção. Lembro-me do seu comentário sobre a volta do marxismo clássico que estava em marcha. Desde então nos fizemos muito bons amigos e trabalhamos numa direção teórica muito próxima. Não posso dizer o mesmo do plano político. Naquele encontro de Tilburg, que reunia toda uma juventude de esquerda que emergia na Europa, Mandel era um líder incontestável, até que, a partir de uma concepção equivocada do encontro, tipicamente pluralista, resolveu fazer aprovar uma condenação ao principal economista do Partido Comunista dos Estados Unidos, Victor Perlo, presente ao encontro, por seu apoio à invasão soviética da Tchecoslováquia. Possívelmente esta condenação era majoritária entre os jovens revolucionários europeus, mas a reunião não havia sido convocada para este tipo de pronunciamento político. Mandel insistiu pouco habilmente, com apoio de uma minoria trotskista, no pronunciamento. Esta atuação o isolou totalmente na reunião onde ele seguramente era o teórico econômico e quase seguramente inclusive no campo político mais respeitado. Era mais um exemplo dos métodos de luta sectários que impediam ao trotskismo tornar-se um fenômeno de massas. Na verdade queimaram um quadro de grande expressão internacional.

Nos anos 70 acompanhei com muito cuidado a evolução de Mandel, particularmente sua obra máxima O Capitalismo Tardio, da qual me enviou um exemplar apelando para minhas observações e críticas. Preparamos na Universidad Nacional Autônoma de México, cujo doutorado de economia eu dirigi, um profundo debate de seu livro que discutimos com ele mesmo, tal como o havíamos feito com o grupo da regulação, na França, com os seguidores de Althusser, e com os vários teóricos latino americanos, dos paises socialistas, da África e da Ásia. Participei nesta época da criação da Associação de Economistas do Terceiro Mundo, profundamente associada ao poderoso movimento dos não alinhados que assustou seriamente o estabelecimento imperialista mundial. Mandel se mostrava sensível a esta evolução mas tinha dificuldade de encontrar um espaço político neste movimento tão criativo devido as restrições das correntes stalinistas que participavam do mesmo.

Voltei a relacionar-me mais com Ernest Mandel, em 1984, quando o convidei para o I Encontro Internacional de Política Econômica que organizei no Rio de Janeiro. Entre outras coisas, consegui reunir, numa sessão memorável que coordenei, a Inmanuel Wallerstein, André Gunder Frank, Samir Amin, Giovanni Arrighi e Ernest Mandel para um debate em profundidade sobre a crise geral do capitalismo e os ciclos longos. Creio que este debate ajudou a abrir uma nova fase no nosso esforço comum para articular uma visão dialética de longo prazo sobre a evolução do capitalismo como um sistema mundial. Este esforço vinha já se concretizando nos seminários sobre sistema mundial que Samir Amin começou em Dakar e que Inmanuel Wallerstein vinha coordenando desde a década de 70.

Para perceber o prestígio amplo de Mandel, posso citar a reação de Enrique Iglesias, então secretario executivo da CEPAL, logo que sentou na mesa de debates em que participava. Seu interesse principal era conhecer a Ernest Mandel por quem me perguntou imediatamente. Infelizmente, para sua decepção Mandel estava fazendo uma confêrencia em São Paulo naquele dia para os seus companheiros. Como Iglesias, muita gente da coordenação das ciencias sociais e particularmente da economia tinha em Mandel uma referência fundamental.

Creio que este interesse continua não somente nos círculos trotskistas (que atualmente são lidos e discutidos inclusive nos antigos países socialistas submetidos ao stalinismo onde o nome de Trotsky era demonizado). No período neoliberal, não somente Mandel mas muitos outros teóricos de esquerda foram demonizados no mundo inteiro mas já é tempo de abrir as janelas do conhecimento ao pensamento crítico e então Ernest Mandel ocupará o lugar privilegiado que deve ter na história do ensamento econômico e particularmente do marxismo e do pensamento crítico em geral. Quem não o ler e estudar vai perder demasiado.

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