A MOEDA SOU EU.
Theotonio Dos Santos*
Temos insistido, em vários artigos e livros, (particularmente em Do Terror à Esperança – Auge e Decadência do Neoliberalismo, Idéias e Letras, 2004) na tese de que o chamado “pensamento único “neoliberal é uma tentativa de reduzir o pensamento econômico aos princípios ideológicos do século XVIII, quando o ideal de uma economia baseada no livre mercado fazia parte da luta pela hegemonia social, encetada por uma burguesia em ascensão. Tratava-se de provar a viabilidade de uma economia de base mercantil como força organizadora e reguladora das relações humanas, procurando-se provar que ela conduziria a uma organização social com alto poder de acumulação de riqueza e de alcance da felicidade humana.
Consolidava-se assim o conceito do indivíduo voltado para o aumento incessante da posse e da busca da felicidade, a ser obtida a partir do comportamento racional pleno, alcançado a partir da total liberdade deste indivíduo possessivo.
Na verdade este indivíduo possessivo precisava de um Estado soberano e centralizado, capaz de garantir o pleno desenvolvimento, desta liberdade em espaços geográficos e sociais crescentes. Não é pois absurdo identificar o apoio desta burguesia ascendente ao Estado Absolutista, no qual a facção monárquica da nobreza utilizava o Estado soberano, unificado e centralizado para abrir os espaços de expansão da burguesia. Luis XIV não era pois um inemigo e sim um aliado provisório. A consigna de Luis XIV era plenamente apoiada pelos forjadores da nova sociedade burguesa. “O Estado sou Eu. “
O poder vertical, altamente concentrado e centralizado, fazia parte do ideal que depois se desdobraria no liberalismo, buscando deter, durante todo o século XIX, a ascensão da democracia revolucionária que alcançara seu mais alto grau na Revolução Francesa, sem esquecer sua pré-estréia através da violência transformadora da Revolução Inglesa, regicida e violentamente concentradora de um poder ainda insuficientemente desenvolvido para consolidar-se.
A burguesia já alcançou este Estado moderno, seu principal instrumento de enriquecimento e poder. Mas ela teve nos seus calcanhares a força revolucionária dos democratas que, através da expansão do voto universal, minaram constantemente o pleno poder dos liberais. Daí esta necessidade permanente da democracia liberal, forjada no começo do século XX para tentar subjugar a democracia aos princípios do liberalismo, de conter o avanço dos princípios democráticos. Não foi à toa que o fascismo italiano e o nazismo alemão alcançaram o domínio de toda a Europa continental em poucos anos de ocupações sem nenhuma resistência. Tratava-se de impor o poder do chefe, acima da ação democrática dos povos subjugados.
Como seria bom, pensa no fundo todo bom burguês, se o mundo pudesse ser dirigido por um punhado de tecnocratas e políticos carismáticos, com todo o poder da informação em suas mãos, submetidos totalmente ao ideal do enriquecimento que só os burgueses podem satisfazer. Mas a derrota do nazismo foi uma lição profunda. Era necessário abrir algum espaço para a participação da população na gestão da coisa pública. Era necessário incorporar de alguma forma o ideal democrático no discurso liberal. O indivíduo não só tem o direito de aumentar suas posses indefinidamente, mas ele também precisa incorporar-se ao Estado para garantir uma ordem social superior.
Mas há certos setores do Estado que estão acima do conhecimento e do poder dos indivíduos que compõem a massa inculta e rebelde. Se o poder não pode mais ser entregue totalmente aos homens de posse e de saber, que pelo menos se reservem os pontos mais cruciais do mesmo. Entre estes está sobre tudo o dinheiro, suprema criação da economia mercantil, que permitiu o pleno poder do capital. É necessário garantir que esta suprema manifestação da riqueza esteja nas mãos corretas. O dinheiro sou EU. Não mais o monarca indicado por Deus, pois não se crê mais nestas coisas, e sim o técnico neutro, acima dos interesses mesquinhos das forças políticas em jogo.
Chegamos assim a este supremo ideal do século XVIII que o domínio dos meios de comunicação nos apresenta como uma suprema expressão de modernidade ou até de pós modernidade. O BANCO CENTRAL, lugar privilegiado da Ciência Econômica, esta construção infalível do conhecimento perfeito. O reino destes senhores impassíveis que não aceitam a pressão dos interesses políticos mas somente as leis inflexíveis da ciência econômica, que tem no MERCADO seu Deus supremo. Assim como os monarcas representavam o poder divino dos reis, os “técnicos” do Banco Central representam o poder material dos mercados. A economia cumpre o mesmo papel que os filósofos e teólogos escoláticos representaram na Idade Média. Os sábios que tudo podiam deduzir das Sagradas escrituras, foram substituídos pelos técnicos que podem deduzir políticas macro econômicas incontestáveis das equações que não alcançaram, contudo a complexidade da matemática contemporânea.
Pois assim como os filósofos escoláticos desconheciam os avanços dos métodos empíricos de conhecimento desenvolvidos durante os séculos iniciais da idade moderna, os nossos “cientistas” econômicos desconhecem o avanço do conhecimento empírico contemporâneo e continuam pensando com as categorias da burguesia nas suas etapas iniciais, cheias de idealismo filosófico e desprezo pelo conhecimento objetivo e a prática científica moderna.
Estas reflexões são muito úteis quando assistimos a tentativa de reforçar o poder dos bancos centrais hoje totalmente desmoralizado pelas suas intervenções para desregular os sistemas financeiros a serviço dos especuladores mais irresponsáveis. O recente caso da Argentina mostra como estes senhores se consideram no direito de substituir os poderes derivados do voto universal para colocar-se a serviço dos grupos econômicos de sua preferência.
OS CIDADÃOS ACIMA DE QUALQUER SUSPEITA!
No caso brasileiro, o Banco Central não é autônomo, mas não se deixa abalar por um grito quase anônima de empresários, trabalhadores, profissionais e políticos contra sua política de juros altos que coloca o Brasil muito abaixo do crescimento das economias que compõem os BRICAS.
Se a palavra de alguns dos principais economistas do país que não trabalham para o setor financeiro não é tomada em consideração, se a opinião de todos os colégios e associações de economistas do país não conta, se não conta também a opinião dos centros de estudo das federações da indústria, a de seus dirigentes junto com os do comércio e da agricultura, se não conta a opinião dos sindicatos e dos movimentos sociais, nem tão pouco a das ONGs, será que o Presidente da República não acreditaria na opinião de um dos mais sérios Prêmio Nobel de Economia, Joseph Stiglitz, quando em importante artigo recente se refere ao “ regime de metas de inflação, segundo o qual sempre que os preços sobem acima de determinado nível os juros devem ser elevados. Esta receita se baseia em rala teoria econômica ou evidência empírica; não há razão para esperar que, qualquer que seja a fonte da inflação, a melhor resposta seja elevar os juros. Espera-se que a maioria dos países tenha o bom senso de não implementar esse regime; minha simpatia vai para os infelizes cidadãos daqueles que já o fizeram.”(1)
É razoável que um governo use mais de 30% dos gastos públicos para pagar juros a um grupo de ociosos que concentram a renda nacional, baseado única e exclusivamente numa tese de “ralo” fundamento teórico e empírico? É razoável que sete cidadãos acima de toda suspeita e de todo o país tenham o direito de decidir o aumento colossal do gasto público para baixar uma inflação pela qual eles são, em grande parte, os responsáveis. Porque a lei de responsabilidade fiscal não se aplica estes senhores? Eles podem criar despesa (ou juros não é despesa, e a mais inútil possível?) sem indicar as fontes para cobri-las, exceto obrigar o governo a diminuir os gastos necessários apara o atendimento da população e para os investimentos ultra necessários para um país que vem se submetendo há anos a uma estagnação programada e ideologicamente sustentada. Com isto contrariam - sem nenhuma penalidade - a lei de responsabilidade fiscal que tanto elogiam...
Quando afirmo que são responsáveis pela inflação é porque, em boa teoria econômica e com respaldo nos fatos, a mais alta taxa de juros do mundo é geradora de uma das mais altas inflações do mundo. O Brasil do tão elogiado plano real manteve uma das mais altas inflações do mundo no período de 1994 a 2002. Nestes anos, houve uma queda brutal da inflação mundial e até mesmo uma situação de deflação no mundo que o Brasil acompanhou em geral, mas sempre se mantendo no mais alto patamar da inflação mundial. Compare-se a taxa de inflação no Brasil com os dados sobre a inflação mundial para este período quando ela apresentou pouquíssimos casos acima de dois dígitos, e muito poucos acima de 5%. O patamar no qual se situou o Brasil na maior parte do tempo ultrapassou gravemente os índices mais altos de inflação no mundo.
The Economist dedicou um número especial à crise dos bancos centrais devido aos seus sucessivos fracassos para prever as crises financeiras que marcaram a década dos 90s e a primeira década do século XXI. Neste informe extremamente negativo para os Bancos Centrais a revista conservadora apresenta um gráfico das taxas de inflação nas décadas de 80, 90 e 2000 que confirmam claramente nossas análises sobre estas políticas realizadas desde a década de 80 com precisão e corretas previsões. Estes dados se encontram em Keneth Kuttner & Adam Posen, “Do Markets Care Who Chairs the Central Bank?”, NBER Working Paper 13101, 2007.
O Annual Report do Banco Mundial de 2007 mostrou que “na atualidade, a taxa de inflação é de menos de 10% em todas as regiões em desenvolvimento”. Os dados de um estudo do Banco Mundial sobre a inflação nestes países de 1990 a 2005, publicados neste mesmo informe, mostram claramente que as economias com altas taxas de crescimento geralmente têm baixas taxas de inflação e vice versa. Por exemplo, a China apresenta neste período uma taxa media de crescimento de 10% e uma taxa média de inflação próxima aos 5%, enquanto o Brasil apresenta uma taxa de crescimento de 2,5% aproximadamente e uma taxa de inflação média de 70%. E lembre-se que todos os planos econômicos (inclusive o plano cruzado) deste período no Brasil apresentaram altíssimas taxas de juro enquanto a China as manteve extremamente baixas.
A explicação não está só nas debilidades de nossa oferta, sempre pressionada para baixo devido à queda ou estagnação permanente de nossa demanda. Nosso povo tem extremas necessidades não atendidas mas não tem renda para obtê-las não podendo criar nenhuma “explosão de demanda” como temem nossos economistas, que sempre encontram razões para impedir o avanço de nosso povo. Trata-se dos mesmos que previam o fim do sistema produtivo brasileiro se terminasse a escravidão.
Temos que pensar também no lado da oferta econômica. Esta inclui uma variável que a “Ciência Econômica” dos neoclássicos para cá não pode conceber: a taxa média de lucros. Ela é profundamente afetada pela taxa média de juros. Conseqüentemente, o preço dos produtos é profundamente influenciado pela taxa media de juros pois, ao elevar-se esta taxa, se eleva a taxa de lucro necessária para pagar estes altíssimos juros, e se elevam portanto os preços e o próprio patamar da inflação. Esta cadeia negativa é independente dos impactos da taxa de câmbio que nos últimos 18 anos tem sido afetada por uma tendência à sobrevalorização do real que eleva o patamar internacional de nossos preços e, por tanto, nos mantém num altíssimo padrão de preços, uma inflação oculta pois a taxa inflacionária não aparece como muito alta. É claro pois que a taxa de inflação aumenta com o aumento da taxa de juros paga pelos empresários produtores. Não há pois nenhuma razão para supor que uma queda na taxa de juros provocará uma tendência a aumentar a inflação. Se os demais fatores
não atuarem de maneira contrária, devemos esperar uma baixa da inflação. Como vem ocorrendo no último ano(2009) com a queda da taxa de juros.
Voltando ao Brasil atual, é necessário agregar ainda o fato de que o aumento do pagamento de juros pelo Estado aumenta dramaticamente o gasto público e provoca uma pressão inflacionária tanto mais importante quanto cresce a massa de dívidas a pagar. E é necessário ter bem claro que esta dívida pública não cresce porque o Estado gasta muito em suas atividades próprias. Ela cresce para pagar a si mesma. É por isto que vivemos este paradoxo de um pais que tem superávit fiscal primário ( e por tanto gasta menos do que arrecada ) e tem a maior taxa de juros do mundo. Isto contraria evidentemente as leis do mercado.
Um pais com superávit fiscal teria que pagar baixíssimos juros pois não tem necessidade de empréstimo, exceto pelo fato absurdo de que suas próprias autoridades financeiras pagam, contra toda a lógica do mercado, os mais altos juros do mundo... E, diga-se de passagem, que este juro sempre aumenta, mesmo quando cai a taxa de juros mundial (sob a alegação de que se deve atrair capitais do exterior – mas para que?- para pagar um déficit comercial que hoje por exemplo não existe) ou mesmo quando temos altos superávits fiscais ( para pagar as dívidas geradas pelos juros altos que estes “técnicos” determinam!!!).
Para arrematar este conjunto de paradoxos, vemos as agências internacionais de risco diminuirem o risco Brasil enquanto nosso Banco Central nos considera o mais alto risco do mundo e sempre querem elevar nossa taxa de juros ainda mais. Ora, o modelito que calcula nossa taxa de juros está baseado na taxa de juros internacional formada em Nova York (que está em queda) mais as subjetivas taxas de risco que o pais apresentaria. Se nossa taxa de risco baixa¹, o modelito só pode acusar uma baixa da taxa de juros ou então seus formuladores teriam que se opor às opiniões das agências de risco. Inexplicavelmente, em vez de protestarem contra esta apreciação contrária à sua política de juros, os dirigentes do Banco Central saúdam esta queda de riscos considerando-a muito adequada!!!
Senhor Presidente, não existe nenhuma teoria econômica nem nenhuma evidência empírica que possa explicar esta conduta. Quando a inflação mundial estava baixando (e eu estudei neste momento o fenômeno da deflação, incorporado posteriormente estas conclusões no meu livro já citado sobre Do Terror à Esperança: Auge e Declínio do Neoliberalismo ), o Banco Central manteve a nossa inflação acima da média mundial. Agora que há o risco de uma pequena pressão inflacionária mundial, ainda que localizada, esta política de altos juros vai nos colocar sob forte pressão inflacionária. Se Sua Excelência quer deter a inflação e estimular o crescimento, por favor coloque-se por cima destes cidadãos acima de toda suspeita e escute o clamor do seu povo.
*Presidente da Cátedra e Rede da UNESCO e da Universidade das Nações Unidas sobre “Economia Global e Desenvolvimento Sustentável”. Professor emérito da UFF.
NOTAS
(1) Joseph E. Stiglitz, “A falência das metas de inflação”, O Globo, 7 de junho de 2008, p. 7.
The Economist dedicou um número especial à crise dos bancos centrais devido aos seus sucessivos fracassos para prever as crises financeiras que marcaram as décadas dos 90s e a primeira década do século XXI. Neste informe extremamente negativo para os Bancos Centrais apresenta um gráfico das taxas de inflação nas décadas de 80, 90 e 2000 que confirmam claramente nossas análises sobre estas políticas realizadas desde a década de 80 com precisão e corretas previsões. Estes dados se encontram em Keneth Kuttner & Adam Posen, “Do Markets Care Who Chairs the Central Bank?”, NBER Working Paper 13101, 2007.
Estou feliz em ler este artigo do Professor Theotonio dos Santos, via Internet. Mesmo distante, fisicamente, continuo a seu lado na caminhada contra os economistas "cabecas de planilhas".
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