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sábado, 31 de outubro de 2009

Resenha de "Adam Smith em Pequim", de Giovanni Arrighi, por Amaury Porto de Oliveira


Indico aos meus leitores este texto do embaixador Amaury Porto de Oliveira que tinha guardado e que da elementos muito importantes para o conhecimento do processo chinês. Amaury foi embaixador do Brasil em Cingapura e converteu-se num dos mais importantes conhecedores dos processo asiáticos entre nós.

Giovanni Arrighi
Adam Smith em Pequim – Origens e Fundamentos do Século XXI
São Paulo: Boitempo, 2008.


O lançamento, em meados de maio de 2008, da tradução brasileira do último livro de Giovanni Arrighi, menos de um ano após a publicação do original nos EUA, é acontecimento a ser assinalado. Não apenas pelo valor intrínseco da obra, mas também e especialmente – conforme acentua Theotônio dos Santos numa rica Apresentação do livro - pela contribuição que essa iniciativa da Boitempo veio dar, à correção do atraso com que tem a intelectualidade brasileira tomado conhecimento dos esforços de toda uma plêiade de cientistas sociais, nos EUA, na Europa e no Leste Asiático, com vistas ao melhor entendimento de aspectos fundamentais do mundo moderno. Considere-se, a esse respeito, que Arrighi dedicou seu trabalho a Andre Gunder Frank (falecido em 2005), em consideração a escrito de 1996, ReOrient. Trata-se de uma das obras centrais do esforço de revisão sociológica a que me referi acima, até hoje não traduzida no Brasil, onde continuamos a associar Gunder Frank a teses suas dos anos de 1960, em torno do desenvolvimento do subdesenvolvimento.

Em ReOrient: Global Economy in the Asian Age (Berkeley, University of California Press, 1988), Gunder Frank procede à exegese de colossal massa de fontes secundárias para revirar de cabeça para baixo a interpretação do mundo segundo Marx, Weber e outros teóricos, entre os quais Polanyi, Rostow, Braudel e Wallerstein. Frank procura explicar a Ascensão do Ocidente em termos econômicos e demográficos, a partir de 1400, numa grande síntese que relaciona tal ascensão com o declínio do Oriente, iniciado ao redor de 1800. Esse esforço de Gunder Frank insere-se nas conclusões de um grupo crescente de estudiosos, para os quais o ressurgimento da China, seja qual for o resultado final desse fenômeno, dá consistência à tese de que existe uma diferença histórica fundamental, de alcance mundial, entre os processos de formação do mercado e os processos de desenvolvimento capitalista.

O próprio título do livro de Arrighi, a provocadora identificação de Pequim como o destino histórico das formulações de Adam Smith, ganha significado quando o autor evoca, logo no título do seu primeiro capítulo, um ensaio de 1971 do filósofo marxista Mario Tronti, chamado “Marx em Detroit”. A tese de Tronti era expressão da crise de identidade por que passava o marxismo, ao ver sua pretensão de teoria do desenvolvimento capitalista e doutrina da transformação socialista incessantemente migrar do centro para locais cada vez mais periféricos do capitalismo mundial. Na década de 1970, precisavam os marxistas recorrer a Lênin para começar a entender a guerra imperialista que lavrava no Vietnam. Nesse contexto, um grupo importante de marxistas ocidentais, dos dois lados do Atlântico, redescobria o processo de produção e os conflitos de classe no local do trabalho, matéria do Vol. I de O Capital, morando ocultamente nas rixas entre patrões e trabalhadores, nos centros industriais dos EUA.

Em Adam Smith em Pequim, Arrighi leva adiante a controvérsia, exaustivamente elaborada por Gunder Frank, a propósito de quando começa a ser correto dizer que a Europa assume o posto de centro da economia global. Arrighi retira dos esforços de Frank sobretudo a distinção
entre o desenvolvimento da economia de mercado e o desenvolvimento capitalista, propriamente dito. Essa distinção permite a Arrighi formular uma das teses centrais do seu livro, que sintetizarei aqui usando suas próprias palavras (pg. 56). Há dois tipos diferentes de desenvolvimento econômico baseado no mercado. Um tipo ocorre dentro de determinado arcabouço, mas sem alterá-lo de modo fundamental. Podem ocorrer mudanças capazes de aumentar ou reduzir o potencial do crescimento econômico, mas elas nascem de processos e ações de natureza não econômica e não dentro do processo de crescimento. Já o segundo tipo de desenvolvimento econômico baseado no mercado tende a destruir o arcabouço social dentro do qual ocorre, e a criar condições (não necessariamente concretizadas) para o surgimento de novos arcabouços sociais com potencial de crescimento diferente.

Arrighi identifica o primeiro dos tipos acima com as noções de crescimento Smithiano e de Revolução Industriosa usadas no seu livro, e de que tratarei adiante. Chama desenvolvimento Schumpeteriano ou Marxiano, conforme o contexto, o desenvolvimento do segundo tipo, associado à Revolução Industrial.

Para a plêiade de historiadores e cientistas sociais por trás de todas essas elucubrações, as meticulosas análises comerciais, financeiras, demográficas, etc., por eles levadas a cabo, mostram a existência desde séculos atrás de um sistema econômico global, baseado fundamentalmente na Ásia (Índia e China funcionando como os dois grandes centros estruturadores), e no quadro do qual a Europa figurou até a altura do século XIX como um apêndice secundário. Foi graças, sobretudo, ao acesso privilegiado dos europeus às riquezas naturais das Américas, e à oportuna abundância de combustíveis fósseis na Europa do Norte, que veio a ocorrer o grande salto de crescimento econômico distanciando a Europa da Ásia. A “Grande Divergência” é a denominação consagrada, recolhida por Kenneth Pomeranz para título de uma das obras que fornecem o pano de fundo do livro de Arrighi (Kenneth Pomeranz, The Great Divergence. Princeton: Princeton University Press, 2000). Adam Smith, escrevendo em 1776, ainda asseverou: “A China é país muito mais rico do que qualquer parte da Europa.” No seu clássico A Riqueza das Nações, Smith não antecipou mudanças em tal situação, e não demonstrou ter consciência de que estava iminente a “Revolução Industrial”. Ele morreria antes da sua eclosão.

Outro autor com contribuição de importância para o livro de Arrighi é K. Sugihara, um dos formuladores da noção de “Revolução Industriosa” (Kaoru Sugihara, “The East Asian path of economic development. A long-term perspective”, in Giovanni Arrighi et al., The Resurgence of East Asia. New York: Routledge, 2003). Arrighi dá destaque ao texto de Sugihara, vendo-o como pioneiro na tentativa de construir um modelo abrangente da origem, evolução e limites da Grande Divergência. Embora concordando substancialmente com a descrição desse fenômeno feita por Pomeranz, Sugihara a enriquecera, ao enfatizar as grandes diferenças de proporção homem-terra entre as regiões centrais da Ásia oriental e da Europa ocidental, antes de 1800, tanto como causa como quanto efeito da Revolução Industriosa da Ásia oriental. Do século XVI até o século XVIII,
na descrição de Sugihara, o desenvolvimento de instituições que absorviam mão-de-obra e de tecnologias que faziam uso intensivo da mão-de-obra como reação às restrições de recursos naturais (principalmente a escassez de terra) permitiu que os Estados da Ásia oriental tivessem grande aumento populacional, acompanhado não da deterioração e sim de melhora, embora modesta, do padrão de vida. Essa fuga às limitações Malthusianas foi especialmente notável na China, cuja população cresceu várias vezes, atingido 150 milhões de habitantes.

É de notar que, ao aplicar o conceito de Revolução Industriosa à China, Sugihara não tem em vista algum tipo de preâmbulo à Revolução Industrial. Ele vê o mercado se desenvolvendo, mas por caminho distinto do modelo desenvolvimentista de uso intensivo de capital e energia, que iria ser iniciado pela Inglaterra e levado ao extremo pelos EUA. A principal afirmação de Sugihara – acentua Arrighi – é que a instrumentalidade da Revolução Industriosa na Ásia oriental manteve a região naquela rota alternativa, de acumular capacitação tecnológica sem desapropriação da terra, caminho fundamental para a configuração das respostas a serem dadas aos desafios e oportunidades trazidos pela Revolução Industrial ocidental. Por sua vez, essa observação de Arrighi nos permite apreender a grande atualidade do seu livro.
A busca maior de Adam Smith em Pequim é, com efeito, pela resposta a indagação que tem perturbado inclusive partidos comunistas, de se entrou a China em rota de transição para o Capitalismo. Arrighi admite que sob a Terceira Geração de dirigentes, comandada por Jiang Zemin, pareceu plausível dar resposta positiva. Mas a Quarta Geração, de Hu Jintao e Wen Jiabao, está recolocando o problema na rota implícita nas reformas de Deng Xiaoping. Para Arrighi, o que tem confundido os observadores é a natureza Smithiana, de desenvolvimento apoiado no mercado, em vez do desenvolvimento de tipo capitalista estudado por Marx, das reformas Dengistas. Deng Xiaoping usou o mercado como instrumento de dominação, introduzindo as reformas de modo gradual para não perturbar a tranqüilidade pública. Fez os capitalistas, não os trabalhadores, competirem entre si, reduzindo o lucro ao mínimo tolerável. Encorajou a divisão de trabalho entre unidades de produção e comunidades, e não no interior delas, investindo paralelamente na educação, a fim de contrabalançar o efeito negativo da divisão de trabalho para a qualidade intelectual da população. Deu prioridade à formação do mercado interno e ao desenvolvimento agrícola como base principal da industrialização, só depois recorrendo ao capital estrangeiro e ao comércio exterior, e ainda assim com o cuidado de fazê-lo através da mediação da diáspora chinesa (as ZEEs) e em termos ajustados ao interesse nacional da China.

Apesar do relevo assim dado às características Smithianas do reformismo chinês na década de 1980, Arrighi fez questão de frisar não ser
certo, sequer, que Deng Xiaoping tenha lido Adam Smith. E não era preciso. No começo do século XVIII, quando se consolidou a dinastia Qing, a China viveu outro período de florescimento, com o governo empenhado em aprimorar a agricultura, aperfeiçoar a irrigação e o transporte fluvial, tudo de maneira a compensar desigualdades espaciais e temporais, graças a políticas que estimulavam as tendências do mercado por meio do apoio econômico das periferias internas. O governo Qing apoiou-se nos mecanismos de mercado para alimentar a imensa e crescente população, fazendo da China do século XVIII um belo exemplo do caminho “natural” para a o opulência, que ainda ia ser teorizado por Smith. A China – como acentua Arrighi – tornar-se-ia fonte de inspiração para os defensores europeus do absolutismo benévolo, da meritocracia e de economias nacionais prósperas com apoio no mercado. O que distingue essa fase da história chinesa da “economia socialista de mercado”, de hoje, é exatamente o socialismo. A integração na modernidade sociológica trazida pela Revolução de 1949, de cuja dinâmica não se desligou Deng Xiaoping.

Amaury Porto de Oliveira

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