Páginas

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Globalização, dependência e neoliberalismo

Theotonio dos Santos

www.monitormercantil.com.br - 08/05/2003 - 19:05


A Universidade vive hoje em dia uma situação muito dramática. As empresas de tecnologia de ponta têm absorvido boa parte da pesquisa básica, à medida em que a revolução científico-técnica transformou o conhecimento científico no insumo imediato dos produtos e serviços vendidos por estas empresas.

As ciências humanas têm sido cada vez mais absorvidas pelos meios de comunicação, que apresentam os cientistas sociais e humanistas como espetáculos do conhecimento, assim como absorveram boa parte dos artistas e escritores.

O mundo acadêmico parece ter ficado com as tarefas medíocres e desinteressantes, exceto pela militância de alguns que todavia acreditam na Universidade como centro de reflexão e de pensamento. É pois reconfortante participar de uma banca de doutorado na qual se entrega uma tese que representa um verdadeiro passo adiante para o avanço do conhecimento.

Melhor ainda é constatar que este trabalho cuidadoso e árduo se inscreve num campo teórico e analítico no qual tive um papel bastante significativo. Me refiro à tese de doutorado apresentada no Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP) no dia 5 de maio, por Carlos Eduardo Martins, de cuja banca faço parte.

A tese enfrenta com vigor teórico exemplar uma temática de grande atualidade e toma pelos chifres três conceitos chaves para o pensamento social contemporâneo: a globalização, a dependência e o neoliberalismo. Mas o mais significativo é que inscreve esta vasta tarefa intelectual no quadro da análise do moderno sistema mundial, cuja crise discute com rigor.

O autor parte dos estudos de Inmanuel Wallerstein sobre o capitalismo histórico. Trata-se de conhecer que as tentativas de compreender o capitalismo como um modo de produção puro, como Marx realizou com enorme êxito, não esgotam a compreensão do mesmo, na medida em que sua constituição histórica determina em grande parte elementos chaves do sistema econômico, social e político que fazem parte de sua própria essência.

Entre estes elementos históricos está o moderno sistema mundial que se constituiu no século XVI, com o início das navegações oceânicas. Aprovadas financeiramente pelos genoveses, mas organizadas por Portugal e Espanha, estas navegações incorporam as Américas no circuito comercial mundial e abre o comércio com o Oriente dominado até então pelos Árabes.

Mas este sistema se estabelece mais firmemente com o pacto de equilíbrio europeu implantado pela Holanda no século XVII e finalmente pela hegemonia mundial estabelecida pelo Reino Unido, apoiado firmemente na revolução industrial que permitiu a integração entre o modo de produção capitalista e a base material que entregou ao novo sistema mundial os meios de conquista de todo o planeta.

Cada um destes períodos se caracterizou por um movimento cíclico que Fernand Braudel estudou com enorme rigor e que Inmanuel Wallerstein se deu a tarefa de pesquisar nos três volumens de seu Moderno Sistema-Mundo. Falta colocar alguns mais que analisarão o surgimento de um novo ciclo mundial no final da Segunda Guerra Mundial sob a hegemonia do sistema financeiro, monetário e geopolítico internacional estabelecido pelos Estados Unidos e seus aliados, vencedores da guerra.

O autor fez um balanço bastante sério das propostas de análises dos ciclos longos de Inmanuel e de Giovanni Arrigui, que se caracterizam pelo estabelecimento de um poder hegemônico, as zonas periféricas e semiperiféricas que constituem este sistema. O importante de seu enfoque é a demonstração da necessidade desta visão secular para dar sentido às análises das conjunturas atuais e seus possíveis desdobramentos.

É assim que o conceito de globalização ganha um sentido muito mais concreto quando é inserido no amplo contexto da formação deste moderno sistema mundial. O autor incorpora, contudo, um elemento explicativo fundamental para a compreensão do processo de globalização. Trata-se do papel da revolução científico-técnica na caracterização das mudanças qualitativas que conduziram aos fenômenos que se inserem neste conceito tão amplo.

A tese se dá o trabalho de analisar os diferentes enfoques da globalização, entre os quais distinguem-se:

a - a interpretação globalista, que observa a globalização como uma realidade totalmente nova que constitui um novo objeto de análise para as ciências sociais, com novos atores (as empresas e o mercado global) que subjulgariam os Estados Nacionais; um novo paradigma tecnológico que serviria de base para um novo sistema mundial desterritorializado;

b - as teorias da hegemonia compartilhada, que vêem na revolução microeletrônica uma mudança no grau de internacionalização sem destruir o papel fundamental dos Estados Nacionais;

c - o enfoque neodesenvolvimentista, que vê a globalização como um fenômeno essencialmente financeiro, baseado na integração mundial dos mercados financeiros que se impõemsobre o sistema produtivo, o qual tem que liberar para retomar o desenvolvimento econômico enquanto os Estados Nacionais podem ainda conduzir o desenvolvimento;

d - a interpretação dos teóricos do sistema-mundo que identificam um único sistema a nível global. Entre eles se distingue a posição que pretende existir uma continuidade secular neste sistema único, ou aqueles que acentuam as discontinuidades de sua evolução, inscrita em ciclos de longa duração; por fim analisa a teoria da dependência, que apesar de suas ligações históricas com a teoria do sistema mundial, se distingue pela caracterização da globalização como um período de crise do modo de produção capitalista que incorpora contraditoriamente a revolução científico-técnica e promove o máximo desenvolvimento da lei do valor no plano mundial.

Somente a descrição detalhada destas correntes já é uma contribuição importante para a sistematização de uma problemática cuja compreensão se encontra em fase de grande confusão. Mas o autor nos brinda ainda com uma análise detalhada do caráter da crise do sistema mundial e da hegemonia norte-americana, tão contestada mas tão evidente quando analisada desde um ângulo histórico.

O balanço da questão da hegemonia e das perspectivas do século XXI permite ao autor abordar um capítulo extremamente novo na história das idéias sociais ao estudar as relações entre a teoria da dependência e a teoria do sistema mundial. Eu tratei este tema no meu livro sobre A Teoria da Dependência: Balanço e Perspectivas, publicado no Brasil pela Editora Civilização Brasileira, e no meu artigo para o livro eletrônico em homenagem a Inmanuel Wallerstein, mas o autor adiciona elementos novos ao enfoque desta continuidade teórica e analítica que podem ser encontrados no livro da Unesco Los Retos de la Globalización - Ensayos em Homenaje a Theotonio dos Santos.

Considero extremamente importante também o capítulo dedicado ao tema da dependência e desenvolvimento no moderno sistema mundial. O enfoque do autor situa o debate sobre o desenvolvimento no seu contexto histórico e mostra o papel crítico da teoria da dependência ao analisar os limites históricos do desenvolvimentismo. A ofensiva do pensamento neoliberal desde a década de oitenta do século passado derrubou o desenvolvimentismo apoiando-se em parte nas suas debilidades, mas sobretudo buscou eliminar as conquistas sociais e civilizacionais que tinha alcançado.

O autor mostra como o fracasso histórico do neoliberalismo abre caminho em nossos dias para uma retomada da temática do desenvolvimento e dos debates sobre a dependência, aprofundados pela teoria do sistema mundial.

Mas Martins dedica um capítulo especial ao tema da superexploração do trabalho, desenvolvido por nós, mas em particular por Ruy Mauro Marini na sua dialética da dependência recém publicada pela Editora Vozes em português. A relação entre a expropriação internacional dos excedentes gerados em nossos países e a busca de superexploração dos trabalhadores por parte das classes dominantes locais para compensar estas perdas está no coração do fenômeno da dependência. É extremamente auspicioso ver um grupo de jovens pesquisadores retomar estas questões com grande rigor teórico.

Este caminho teórico permite ao nosso doutorando apontar caminhos sólidos para uma retomada do desenvolvimento em nossos países depois de analisar em detalhe o fracasso histórico do neoliberalismo, com o estudo dos casos do Brasil, Argentina e México. Vale a pena seguir a pista deste rigoroso esforço teórico, analítico e empírico. A Universidade ainda tem o que dizer.

Nenhum comentário:

Postar um comentário